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O afeto e a multiparentalidade

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Para começar, precisamos tecer um breve histórico para entendermos como o ordenamento jurídico brasileiro recebeu a multiparentalidade. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 reconheceu as diversas formas de se constituir uma entidade familiar. A decisão abriu espaço para um padrão diferente da família, com preocupações voltadas ao desenvolvimento individual dos integrantes do núcleo familiar e, principalmente, com a valorização da afetividade.

Com isso, perdeu força o caráter matrimonial e essencialmente patrimonial da família de outrora, construída quando da vigência do Código Civil de 1916.

A importância dada à afetividade e o reconhecimento da igualdade entre todos os filhos priorizou o afeto. Ele passou a ser juridicamente mais relevante. Embora não possua, juridicamente, o mesmo significado da psicologia ou da filosofia, o afeto é no âmbito demonstrado por condutas do cotidiano e não pelo mero sentimento em si.

Mas, nem todas as inclinações afetivas geram o vínculo de filiação. Essa forma de exercício da parentalidade passou a ser recebida pela doutrina e pela jurisprudência. Gerou, inclusive, todos os efeitos decorrentes da relação paterno-filial (ou materno-filial), ainda que não haja lei específica que a regulamente.

Primeiramente, com o reconhecimento das famílias homoafetivas (formada por pessoas do mesmo gênero – feminino/ masculino), abriu-se um precedente para a inclusão de mais de um pai ou mais de uma mãe no registro de nascimento dos filhos, já que, nesses casos, aconteceria sempre uma “dupla maternidade” ou “dupla paternidade”.

Verificou-se, ademais, que, embora os padrastos e madrastas não tenham, por lei, determinadas obrigações em relação aos seus enteados, com o aumento das famílias reconstituídas (formadas por quem já teve um casamento ou relacionamento anterior), fortaleceram-se também as chances de aparecimento de laços afetivos que geram efetivamente uma relação de filiação socioafetiva.

Assim, nas famílias reconstituídas e nas demais modalidades, algumas situações passaram a merecer ponderação, nas quais se cria uma relação de socioafetividade (que exige seu reconhecimento) sem que se desconsidere o valor e o contato com o genitor biológico.

Nesses casos, a multiparentalidade, ou seja, o estabelecimento de vínculo do filho com mais de um pai ou com mais de uma mãe, apresenta-se como solução ao novo impasse trazido pelas contemporâneas relações familiares. Com a aplicação da multiplicidade de vínculos, nenhum dos pais será excluído da relação familiar, o que, em muitos casos, vem em benefício do filho.

A multiparentalidade gera todos os efeitos da filiação para os envolvidos e, por isso, somente deve ser estabelecida quando, de fato, ela estiver presente para os filhos, pois o principal vetor observado na resolução dos conflitos acerca de causas dessa natureza é o do melhor interesse da criança.

Entende-se que a ausência de legislação específica sobre a multiparentalidade não impede que ela seja aplicada, até porque a maioria das questões que envolvem este assunto pode ser resolvida com base nas leis vigentes, sendo necessária, contudo, a interpretação de maneira distinta, com o intuito de proteger as entidades familiares, nos termos propostos pela Constituição e objetivando-se a adequação da regra ao caso concreto.

* Diretor do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM)