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O pronunciamento que ameaça o Brasil

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Na noite deste dia 24.03.2020 o ocupante da Presidência da República, Jair Bolsonaro, pronunciou discurso em cadeia nacional. O resultado não merece ser qualificado como surpreendente como a muitos pareceu. O objeto da manifestação deveria ter sido a grave crise pandêmica de escala global, cujas projeções e reais consequências são nada menos do que apocalípticas, que se tornarão visíveis já nesta próxima semana segundo uma função crescente geometricamente já nas semanas subsequentes.

O pronunciamento do Presidente defendeu a aplicação de políticas que ampliam a já magnífica potência de extermínio massivo do convid-19 ao expressamente convidar que todos retornassem às suas vidas ordinárias, indo ao trabalho, fazendo as suas compras, frequentando escolas etc. O Presidente questionou, por exemplo, por qual motivo deveriam os jovens ser impedidos de frequentar escolas, como se o altíssimo potencial de contágio já não tivesse sido confirmado por diversos países asiáticos e europeus em seus enfrentamentos com o covid-19 desde o início do ano. Sem pejos nem freios, o Presidente ainda em funções aconselhou a retomada da “vida normal”, que todos retomem o exercício de suas profissões e que as ruas recebam novamente os seus transeuntes de sempre.

A fala pública elogiou a insanidade devidamente temperada pelo convite a frequentar as últimas e mais obscuras profundidades do reino de Tânatos, ali onde a sua turva mente transita bastante confortavelmente. Má avaliação seria atribuir qualquer sorte de equívoco no conteúdo das manifestações do Presidente, senão que, mesmo contrariando a realidade dos fatos e ao conjunto das mais basilares evidências científicas, trata-se de que ele carrega consigo uma carga de congruência consigo antípoda da racionalidade pautada pela lógica ancorada na assunção da oposição verdade/falsidade. A trajetória está marcada por um movimento de contínua reiteração de seu compromisso com a criação de todas as condições possíveis para a radical implementação do projeto de fome e morte ao povo brasileiro. Desconhecer este encadeamento dos fatos compromete a compreensão do conjunto de todos os movimentos até realizados e aqueles todavia em curso.

Enquanto ao menos milhares de vidas são postas sob iminente risco de extermínio, a Presidência da República despreza os relatórios de sua ABIN estimando de que serão 5.571 mortes para as próximas duas semanas em face do convid-19, priorizando em seu discurso para a contenção da “histeria” e do “pânico”, desprezando a indicação de medidas concretas e imediatas. A Presidência apresentou motivos suficientes para que diminuísse substancialmente a franja da população todavia crente naquilo em que já poucos podem abrigar sérias dúvidas, a saber, a falta de adesão do Poder Executivo ao exercício da competência que o cargo impõe ao seu titular. É prova desta desconsideração o fato da contraposição dos termos de sua mensagem à nação ao teor da mensagem que Bolsonaro recebeu neste dia 23.03.2020 do Secretário-Geral da ONU, o português Antonio Guterrez, pedindo efetividade nas medidas em resposta à pandemia. Distanciar-se da tomada de decisões e de ações efetivas quando o convid-19 ainda está às portas das ruas brasileiras implicará na perda de milhões de vidas, mas nada disto é alheio à lógica do projeto em curso.

Em meio à gravíssima situação nacional o descolamento da Presidência da realidade restou patente ao atribuir aos governadores o objetivo de concretizar a terra arrasada ao proibir transportes e implementar o confinamento em massa. Aqui a medida do solapamento da legitimidade da Presidência da República. Tarda muito a formação do consenso por parte de todas as autoridades públicas orientadas por básico respeito à ordem constitucional, e em uníssono, propor o impeachment do Presidente ainda em funções, a começar pelo conjunto dos governadores, sob pena de que o amanhã que nos reste oscile entre o lúgubre, o trágico e a completa devastação. O povo e o Estado brasileiro foram efetivamente colocados em altíssimo risco pela Presidência da República, sendo múltiplas as razões para o impedimento, e a questão sanitária é apenas a última delas, mas também uma das mais graves dentre todas as condutas ofensivas.

É imperativo que as mais altas autoridades da República apressem o passo para deslocar o futuro certo encarnado na iminente morte de dezenas de milhares de brasileiros. O discurso realizado por Bolsonaro neste dia 24.03.2020 foi o último de uma Presidência combalida e reiterativa em suas ações atentatórias à Constituição, e quando nada mais do que doze horas haviam transcorrido, o Presidente tornou a veicular ideias atentatórias à preservação da saúde pública. A manifestação deste dia 24.03.2020 somada às declarações da manhã do dia seguinte terminaram de formar o consenso contra Bolsonaro. O poder não admite o vazio.

Roberto Bueno. Professor universitário. Pós-Doutor em Direito. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (UFC). Especialista em Direito Constitucional (Centro de Estudios Constitucionales de Madrid)