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Tresvarios tresandam o país

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Duas atitudes governamentais mostram o absurdo da política brasileira. Na realidade, mais de duas se contarmos as declarações do ministro da Economia a insistir que as reformas são urgentes para retomar o crescimento econômico.

Já não presto atenção no realejo que toca o ministro e cansei de ver as pombas mortas que tira de sua cartola chapliana.

Chocou-me, em ordem crescente, primeiro a decisão do ministro da Justiça de excluir da lista de países afetados pelo coronavírus os Estados Unidos da América, onde a epidemia já foi declarada emergência nacional.

Justificou a discriminação valendo-se da reciprocidade, coisa que os americanos são useiros e vezeiros em descumprir com o Brasil. Talvez Sua Excelência tenha inaugurado uma variante da doutrina Juracy Magalhães que poderia ser formulada como “o que infesta os Estados Unidos perfuma o Brasil”. De qualquer forma, o ministro endossa a teoria de Trump que o coronavirus é um vírus chinês. Não é gratuito que o próprio Trump, ao se dizer feliz por seu contraparte brasileiro não ter sido infectado, tenha aduzido considerá-lo seu aliado número um. Inaugura-se na geopolítica a guerra literalmente virulenta.

A segunda e mais grave tolice política governamental partiu do Itamaraty, que já foi em tempos idos o símbolo maior da política externa brasileira.

Arrastado ingenuamente numa provocação arquitetada por deputado a serviço publicamente sabido de movimentos ideológicos de extrema direita e que confunde AI-5 com quinto ato de ópera mórbida, desconhece quem seja Henry Kissinger e aspira a ser embaixador nos Estados Unidos, nosso Chanceler escorrega em casca de bananinha e transforma uma querela em questão diplomática. E por mais absurdo que pareça, cobra do embaixador chinês pedido de retratação. A geopolítica virulenta recebe de braços abertos o mais novo aliado: a República Federativa do Brasil. Como diria Tom Jobim, o Itamaraty não é para principiantes.

Ainda bem que nosso líder máximo, preceptor do deputado, nos recorda ter com seu contraparte chinês um canal de diálogo aberto. Tranquiliza-se o agronegócio, muito mais interessado em resultados econômicos contáveis do que entrar para a OCDE, organização que não deu um pio sobre a crise econômica internacional e menos ainda fez qualquer gesto de solidariedade com o cataclisma que se espraia por seus países membros. Mais uma vez parecemos salvos pelo descortino e pela ponderação. Reconhecido entusiasticamente pelo bater de panelas, a pedido do líder.

O Chanceler não vislumbrou sequer as oportunidades que o destino abriu diante dele e não honrou sua formação profissional nesta "guerra do fim do mundo”. Perde Sua Excelência, perde o Itamaraty e perde o Brasil.

Há momentos frequentes na vida de assessores em que a dignidade desafia o comodismo. Quanto maior o absolutismo do líder, maior o risco que enfrenta o assessor consciente de sua tarefa e de sua biografia.

Diplomatas, somos funcionários de Estado. Assessores de governo, por acidente. Na essência, sempre funcionários de Estado. Se há uma vertente positiva nesta dolorosa crise sanitária certamente é a de termos redescoberto a importância de um serviço público competente e dedicado. Nosso ministro da Economia discrepa. E não esconde sua ideologia canhestra de que, na modernidade, os mercados se ajustam e panglossiamente tudo irá pelo melhor.

A importância que assumem no Brasil nossos institutos de pesquisa, cientistas e pesquisadores, médicos, para-médicos, enfermeiros e assistentes de saúde é simplesmente proporcional à possibilidade de escaparmos com vida desta praga que se abate sobre nós. Ou não.

A ideologia de Guedes confabula com a destruição das redes sociais protetoras. Ignora doutrinas econômicas conscientes do desnível social. E nesta nau sem rumo navegamos por mais de quatro anos sem praia ou porto. Nosso ministro das Relações Exteriores, cercado de excelentes funcionários públicos alijou, por perversa ideologia, muitos deles, neutralizou outros e alienou, desta forma, a possibilidade de acender um clarão nas brumas. Seria hora de puxarmos um ensurdecedor trio elétrico na OMS, na OMC, na ONU e promovermos não uma guerra virulenta, mas uma batalha solidária contra o vírus e os que dele se beneficiam. Talvez ainda haja tempo, mas massa cinzenta não nasce em bananeira.

Nosso ministro da Saúde, surpresa e esperança que surgem modesta e corajosamente no nosso cenário decaído e decadente, deve receber nosso apoio mais decidido, pois sobre ele já desabam visivelmente as iras dos poderes megalomaníacos.

Sejamos destemidos, pelo menos nesta hora em que a morte é madrasta do tempo.

*Embaixador aposentado