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A peste, o vírus e a virulência

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Estamos com medo. O inimigo maliciosamente se confunde com o ar que respiramos. Usa nossas células corporais como adubo para sua fome insana de destruição . E nós ,que nada fizemos? Sequer podemos ser acusados, como fomos na epidemia dos anos 70, de termos aberto as portas do inferno por nossa luxúria , por termos supostamente agredido os cânones sagrados da moral cristã.

Morreram muitos de nós. Num processo de definhamento corporal nunca antes visto a não ser no retrato simbólico de Dorian Gray. Levamos décadas até conseguirmos o coquetel antivirótico que nos devolveu a condição de senhores de nossas próprias vidas.

Estamos com medo porque agora somos atingidos por bombas de neutrons, máquina de destruição que poupa bens, mas mata seres vivos indiscriminadamente.

Estamos com medo porque os primeiros sinais de desarranjo estrutural profundo e cego surgiram na China de tantos milênios e de tantas invasões que lhe fizeram criar uma muralha militar, que, hoje vista do espaço por onde andam nossos astronautas, surge como uma coluna vertebral da civilização humana.

Estamos com medo porque da China a praga se espraia pela Italia de tantos cézares e de tantas legiões senhoras do mundo, da arte e da língua de nossos povos. E sentimos na pele a tristeza de ver as ruas da Roma histórica desertas e reduzidas ao silêncio tão anti-italiano tão nostálgico de suas feiras e de suas óperas, de seu permanente encantamento com a beleza e com os bons prazeres da vida.

Estamos com medo porque na Grécia de Platão e Sócrates a peste se deparou com os milhares de seres ditos humanos emigrados de guerras fratricidas, rejeitados por povos e governos rebaixados à indignidade dos poderes do racismo, do ódio . Homens, mulheres e crianças reduzidos a pele e ossos, descrentes da vã filosofia que um dia iluminou aquelas belas praias e infinitas ilhas.

Estamos com medo porque a peste atravessou o Atlantico norte na classe executiva e se defrontou com o velho novo mundo da cupidez e da anti-solidariedade. A nova sodoma dos rebarbativos jardins de Mar-al- Largo em que o valor do homem se mede pelo peso de sua bolsa argentária e por sua capacidade de a qualquer custo entesourar moedas ainda que gotejem em seus cofres como lágrimas de pobreza e miséria de seus próprios irmãos. Um novo mundo cujo imperador de turno confunde a grandeza de seu país com o domínio de países amigos e que faz de Hobbes e “do homem como lobo do Homem" um canto de elegia e uma nova forma de sociedade.

Estamos com medo porque da visita do pró- cônsul ao Imperador surge nestas terras ditas tropicais e abençoadas a praga da subserviência e do ódio fraterno acolitado por forças que se escondem no manto da dissimulação e da ideologia mais virulenta e mais hipócrita jamais vista.

Estamos com medo porque aqui nem a praga consegue demover os arquitetos de uma política discriminatória e insana que divide o país-continente entre tacapes e trapaças e se caminha para o apequenamento de um gigante em que tivemos a felicidade de nascer.

E aqui a praga reluta diante do espetáculo inesperado e inédito em que um povo apresenta uma dupla face de solidariedade e de amargo e destruidor ódio.

E a praga nos mostra nossas próprias faces temerosas como se tivesse descido em nossas cidades o espírito malévolo e sua foice sedenta de devastação. E pela primeira vez a praga teme por sua própria sorte e sente o calafrio de que talvez esteja se aproximando do parasita inconquistável.

Na inquestionável vontade de vencê-la, a solidariedade a renascer nesta terra identifica na praga o inerente parasitismo canibal de que a sociedade tem sido a primeira vítima. E ,muito antes dos coronavirus, o povo pressente que seu medo só pode ser vencido pela destruição simultânea dos mitos e ideologias que o transformaram em apático pastoreio dos mais vorazes parasitas.

Talvez depois se possa fazer um mundo menos predatório. A peste, como a esfinge do oráculo de Delphos, está apenas a repetir o “decifra-me ou devoro-te”.

E como no ensina Albert Camus, em “ La Peste “, a praga pode convidar a inúmeras analogias. Esta que nos assola hoje nos quatro cantos do mundo escreve um libelo contra uma universal “estranha forma de vida “ . Onde não se distingue o vírus do virulento parasita.