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Vitória das mulheres no Carnaval

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Não quero falar da vitória das mulheres no Carnaval de 2020 sem antes ressalvar o momento obscuro, autoritário e tenso que o país atravessa. Não quero falar da vitória das mulheres no Carnaval de 2020 sem antes lembrar que a democracia é um valor caro ao brasileiro, em respeito às várias mulheres e homens que lutaram para resgatá-la após o golpe militar que nos jogou nas trevas da ditadura. Nós, mulheres, estamos atentas a todos os movimentos que a política tem feito atualmente e não deixaremos que o autoritarismo reacionário retome de assalto a nossa história. Dito isto, vamos à vitória das mulheres no Carnaval de 2020.

Salve Viradouro, salve as Ganhadeiras de Itapuã, quinta geração de mulheres que lavavam roupas nas águas da Lagoa do Abaeté, na Bahia, vendiam peixes e quitutes, para comprar a própria alforria e de suas famílias no século XIX. As histórias, conversas e canções foram passadas de mães para filhas, através dos anos, formando um grupo de mulheres unidas, fortes, que conservam e divulgam sua cultura, suas músicas. Hoje, as Ganhadeiras de Itapuã são formadas por dezessete mulheres adultas e idosas e dez crianças, que aprendem desde cedo a importância da transmissão do saber entre mulheres. O enredo da Viradouro se apoiou na tese de doutorado de outra mulher: a musicista paulista Harue Tanaka, professora da Universidade Federal da Paraíba, que pesquisou o grupo de mulheres baianas para seu trabalho acadêmico.

Salve Mocidade Independente de Padre Miguel, salve “Elza Deus Soares”, que foi o enredo da escola, na letra de outra mulher: Sandra de Sá. Elza desfilou diva e altiva, aos 89 anos. Não sem antes dar declarações à imprensa sobre o valor da luta pela igualdade de gênero. “Eu defendo isso sempre. Eu acho que tem uma grande importância, que continue, pelo amor de Deus”, disse a jornalistas enquanto se preparava. A escola lembrou a infância pobre de Elza, a carreira e a obra dela, além da violência que a artista sofreu no decorrer da vida por parte de ex-companheiros, que foi representada na ala “Machistas: os selvagens do circo”. A Mocidade ficou em terceiro lugar, mas garantiu a vitória de Elza na história do Carnaval carioca.

Salve Mangueira, salve Jesus mulher, salve a rainha da bateria Evelyn Bastos, que desfilou de manto roxo e sem sambar, em respeito a Jesus Cristo e a tudo que Ele representa. Não sem antes ser autorizada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Nas suas redes sociais, a ênfase dada à responsabilidade que assumiu na avenida: “E se Jesus fosse mulher? Seu coração aceita? Seus olhos enxergam? Seu amor te limita?” E prosseguiu: “Ser mulher é ser luta, ser mulher é saber que precisamos encarar uma guerra por dia contra a discriminação e a opressão que o machismo nos oferece”. Foi exaltada pelas mulheres e pelo público em geral. Também foi atacada por alguns. Mas, por ser mulher em uma sociedade estruturalmente machista, não se intimida por ataques: “nem Jesus agradou a todos”, arrematou, certeira.

A vitória das mulheres no Carnaval de 2020 foi além da avenida. Nos blocos que desfilaram por todo o país foi clara a diferença do comportamento dos homens em relação a anos anteriores. Mesmo em trajetos mais lotados, quando iam passar perto de alguma mulher, levantavam os braços para que não houvesse dúvida em relação à sua atitude caso esbarrassem nas companheiras foliãs. Aquelas “brincadeiras” machistas sem graça de roubar beijo, segurar pela cintura, pegar nos cabelos, que outrora eram vistas como “comuns”, foram praticamente extintas este ano. As moças desfilavam pelas ruas de maiôs, shorts, tops, vestidas ou desnudas, sem precisar desviar de gestos masculinos invasivos. Várias mulheres unidas, a cuidar umas das outras, de olho nos engraçadinhos sem graça que não se sentiram à vontade para se manifestar. E vários homens misturados a essas mulheres; todos e todas dançando, cantando e se respeitando mutuamente de uma forma divertida, carnavalesca, gostosa e saudável.

Foi bonita a festa. Terminamos de alma lavada, parafraseando a escola campeã. Que seja o primeiro de muitos carnavais vitoriosos.

Lídice Leão é jornalista, apresentadora do Programa #Feminismos e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.