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Querida Amazônia: a hora da hermenêutica

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O primeiro impacto após tanta expectativa pode ter sido negativo. Tanto se ansiava por essa exortação pós-sinodal do Sínodo sobre a Amazônia e parecia que não trazia as respostas tão aguardadas. Não apareceu uma posição clara do Pontífice sobre a questão da ordenação de homens casados (viri probati). Tampouco apareceu qualquer avanço sobre a questão da mulher em termos ministeriais. Como sempre, Francisco é o Papa das surpresas. E dessa vez a surpresa acontecia, mas não como se esperava.

Após alguns dias da apresentação da exortação, no entanto, é importante não esquecer a importância da hermenêutica, ou seja, da interpretação. Não existe conhecimento sem interpretação. Até as ciências que se pretendem mais objetivas dentro do leque das ciências humanas e sociais valorizam e privilegiam a interpretação. E neste momento em que, como Igreja e como sociedade, digerimos a exortação pós-sinodal “Querida Amazônia” o convite da hermenêutica se faz sentir com força.

Primeiramente há que recordar o que disse o Papa em sua mensagem conclusiva dos trabalhos do Sínodo. Criticava duramente as elites católicas que só se detinham nas coisas eclesiásticas e eram incapazes de enxergar a importância do que é maior e atinge a todos, qual seja, o diagnóstico da situação que hoje vive a Amazônia, com o problema ecológico, cultural e humano. Segundo Francisco, esses grupos se fixam nas coisas menores, de disciplina intra-eclesiástica, e não naquilo que é o coração da mensagem conclusiva do Sínodo.

Para apoiar sua crítica, lançou mão do que disse o grande escritor francês Charles Péguy: “ ...porque não têm a coragem de estar com o mundo eles creem estar com Deus, porque não têm coragem de comprometer-se nas opções do homem, nas opções da vida do homem, nas opções de vida do homem acreditam lutar por Deus, porque não amam a ninguém creem amar a Deus.”

Em seguida, há que atentar para o que está escrito na exortação. E ali aparece com muita clareza que o Papa considera o documento conclusivo do Sínodo e a exortação pós-sinodal uma só coisa, unificada como desembocadura do processo de sinodalidade percorrido pela Igreja em todo o processo do Sínodo. É assim que diz: “Aqui, não vou desenvolver todas as questões amplamente tratadas no Documento conclusivo; não pretendo substituí-lo nem repeti-lo”. E continua: “Nesta Exortação preferi não citar o Documento, convidando a lê-lo integralmente”.

Em linha de continuidade e coerência, o Papa segue ao longo do texto da Exortação com sua visão descentralizadora que quer dar mais força de atuação às igrejas locais. E defende apaixonadamente a inculturação. Deixa claro que uma Igreja com rosto amazônico é chamada inapelavelmente a valorizar a pluralidade e a riqueza das culturas autóctones e de suas expressões religiosas. “É possível receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente como idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem continuar a considerá-lo um extravio pagão”.

A querida Amazônia, de Francisco e nossa, é plural e diversa. E, por isso, nela “os crentes precisam encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos mais pobres”. Na diferença de cultos e expressões, a prioridade da justiça pela qual clamam os pobres, inseparável do compromisso com a Casa Comum deve ser a nota de uma Igreja com rosto amazônico.

Portanto, os sonhos de Francisco para sua e nossa querida Amazônia devem ser bem interpretados. E para isso não se pode dissociar o processo sinodal, o documento conclusivo e a exortação pós-sinodal. Se o documento final do sínodo é muito claro em pedir uma nova ministerialidade para servir as comunidades amazônica, a exortação prioriza o diagnóstico das grandes questões da região. Mas ao fazê-lo, deixa uma abertura para a questão dos ministérios. As necessidades das comunidades amazônicas falarão mais alto. E os bispos poderão tomar iniciativas mais ousadas, que o Papa provavelmente apoiará.

O momento qualitativo do sínodo e do documento fica preservado. O cuidado da criação é prioridade absoluta. Trata-se de uma prioridade para o planeta e para a humanidade, porque ambos não se dissociam. E o plano de Deus envolve ambos. A Igreja quer estar a serviço desse sonho de Deus, feito de justiça e cuidado do criado. E para isso deve pensar grande e agir em consequência. O sonho de Deus é o que dá o tom aos sonhos do Papa para a querida Amazônia.

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.

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