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Identidade, alianças e estratégias. Contra a reificação do radicalismo

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O recente artigo de Vladimir Safatle em El País, anunciando a “morte” da esquerda, está fazendo barulho. Se ele suaviza, na sequência do argumento, seu diagnóstico, denuncia a esquerda por sua incapacidade de influenciar a agenda do país, deixando o campo livre para o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Até aí, não tenho muito do que discordar.

O problema é o que subjaz ao diagnóstico. Segundo Safatle, desde a transição democrática – e, mais grave, está subentendido, por razões que já explicarei, durante o próprio regime miliar –, a esquerda não fez mais que conciliar com as forças conservadoras, tradicionais, fisiológicas, que em geral administram o Estado brasileiro. Isso foi feito através de um “populismo” nacionalista limitado e desmobilizador, portanto frágil. Quando interessou aos grupos dominantes, o lulismo, que acabou por encarnar esse projeto, foi defenestrado. Safatle mostra-se inconformado com o risco iminente de a esquerda repetir esse suposto erro ao buscar-se uma ampla frente contra o governo de Bolsonaro. Ele vai mais longe e cita Marighella, que não teria aceito essa conciliação com a “burguesia nacional”, que teria levado à derrota e à inação frente ao golpe de 1964. Safatle tem que saber bem do que está falando, afinal editou uma coletânea dos escritos de Marighella, mas não tira todas as consequências de suas afirmações.

Marighella, ao recusar essa suposta conciliação e radicalizar pela esquerda – através da guerrilha, afirmava, transformaria o Brasil em um Vietnam –, apostou em uma estratégia nacionalista-popular de confronto. Chegou foi ao isolamento, com seu grupo, bem como aqueles outros que participaram da luta armada, sendo fácil e rapidamente esmagado pela ditadura. Não é possível duvidar da força de caráter e da coragem de Marighella, mas ele errou gravemente, desperdiçando assim sua vida e sua grande capacidade política. Não lera bem a conjuntura, nem a situação de fundo do Brasil e da América Latina, aplicando mecânica e abstratamente estratégias e táticas que não podiam dar certo aqui. Sobretudo não julgou com acuidade a correlação de forças daquele momento e como se poderiam reunir forças para derrotar a ditadura. Há um certo culto a Marighella, por sua coragem e radicalidade, merecido, porém abstrato e despolitizado. Ele mesmo, com sua inserção em uma tradição de análise de conjuntura herdada da Terceira Internacional, não aceitaria essa despolitização, tão comum na esquerda brasileira hoje e que a leva a uma enorme incapacidade de análise. Além do mais, há muitos que recusaram a luta armada, militaram de outras maneiras e não foram por isso, tenham tombado ou não frente à ditadura, menos heroicos que ele.

Não há espaço neste texto para discutir a derrota de 1964, nem a transição para a democracia. Vale apenas observar que foi uma ampla frente democrática, tal qual na esquerda preconizava o PCB, que derrotou o regime militar e sua tentativa de autoreforma (a qual voltou à cena com o governo Bolsonaro). O PCB acabou se dissolvendo na frente democrática, descuidando de sua identidade, esfacelou-se e foi atropelado por mudanças sociais e políticas que seus velhos dirigentes não compreendiam. O PT participava dessa frente, ambiguamente, enquanto cuidava muito de mostrar à toda a sociedade suas diferenças em relação a qualquer outra força política. Numa conjuntura em que, não obstante o neoliberalismo ir se tornando hegemônico, o processo de democratização avançava, o PT pode decolar, mantendo sua identidade. Abusou dela, contudo, ao chegar ao poder e assim permitindo-se – inicialmente escorado, secretamente, na ideia de que os meios justificam os fins – uma fusão com essas oligarquias tradicionais – ela também em grande parte oculta, como descobriu-se depois. Virou a facção mais frágil delas, ainda que representasse em boa medida os setores populares do país.

O que se apresenta aqui é a difícil relação entre identidade de esquerda e radicalidade política, de um lado, e, de outro, capacidade de tecer alianças que, dentro de uma estratégia de longo alcance, possibilitem atingir objetivos transformadores da ordem social, bem como aqueles, intermediários, necessários para o sucesso da empreitada. No momento presente isso tem, ou tem que ter, como foco a defesa da democracia – limitada, sim, porém nem por isso menos importante – que a muito duras penas conquistamos, o que argumentos de tipo “radical” tendem a obscurecer. Sim, a esquerda tem que manter sua identidade, mas isso se faz com programas e nas lutas sociais, assim como rejeitando as tenebrosas transações que são parte do mundo das oligarquias tradicionais; ou seja, recusando a misturamo-nos com elas. Não será com proclamações vazias e a reificação de um suposto radicalismo, no qual a esquerda acaba isolada e derrotada, que seremos bem-sucedidos. Não há contradição entre manter essa autonomia e construir alianças, se aquelas condições e cuidados fundamentais são aceitos. Obviamente, nem o PCB nem o PT souberam fazê-lo, ao passo que o PSB, PDT e Rede não parecem ter isso como questão. O PCdoB, nesse sentido, tem sido mais bem-sucedido, ao passo que o PSOL, infelizmente, não consegue ir além das limitações de concepção da política que herdou do PT. Sabe-se lá o que quer essa nova Unidade Popular.

Se o PT tinha a história a seu favor, na atual conjuntura ela favorece a direita e mesmo a extrema-direita. Teremos de ser mais inteligentes e sofisticados, abrindo mão do monopólio das cabeças de chapa ou, por outro lado, não participando de governos que estão muito longe de nossa agenda. É preciso, em contrapartida, clareza de que candidaturas e governos liberais não merecem o mesmo tipo de oposição que deve ser dedicada a extrema-direita, em certas circunstâncias merecendo nosso apoio, aberto e politicamente argumentado. Defender e ampliando a democracia, democratizando-a, nos permite resistir hoje e, vitoriosos nessa tarefa, a partir dela avançar, contra os elementos oligárquicos da democracia liberal.

Não estamos mortos, apenas nocauteados pelas drogas, consumidas em excesso, da visão de curto prazo e do sectarismo das identidades exclusivistas, que facilmente se converte em adesismo por ser no fundo despolitizado, bem como aquelas do descaso com a organização e mobilização popular. Isto posto, o artigo de Safatle não ajuda. Atrapalha, e muito, a não ser ao colocar a questão abertamente em discussão. Aceitar seus argumentos é voltar, se se olha mais de perto, a uma política que lá atrás se esgotou e dialeticamente acabou se transformando em seu contrário – do sectarismo ao adesismo. Acabam secundarizando, de fato, a hoje fundamental defesa da democracia. É preciso ir além desse falso dilema.

Professor do IESP-UERJ