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Com a pena do autoritarismo e a tinta da incultura

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Tivessem os censores lido pelo menos as primeiras páginas de “Memórias póstumas de Brás Cubas“, talvez um lampejo de lucidez os teria feito pensar antes de mergulhar num Guandu poluído de ridículo e incultura.

Machado avisou: redigi este livro com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Obra singular, escrita por um dos gênios de nossa literatura e mestre da sutileza e dos meios-tons. Mas, para ouvidos toscos e vistas turvas, Machado de Assis já havia feito a apologia do adultério com Capitu, uma feiticeira de olhos de ressaca. A incultura tudo simplifica, tudo esquematiza, tudo destrói.

A incultura pretende, apoiada no autoritarismo, salvar os incautos das tramas diabólicas da arte em quaisquer de suas formas. Foi assim na Alemanha de Hitler, na União Soviética de Stalin, na China de Mao e até mesmo nos Estados Unidos do Macarthismo.

Já tivemos no Brasil contemporâneo nossos episódios de incultura, em 1937 e nos anos de chumbo da ditadura militar de 64, com momentos de comicidade e ignorância, mas, que se saiba, nunca chegamos ao patético de censurar Machado de Assis ou Os Sertões de Euclides da Cunha. Mergulhamos em profundezas maiores de incultura nos dias de hoje? Basta recordar as pérolas de obscurantismo com que nos brindam nosso ministro da Educação, nosso ex-ministro da Cultura e recentemente nosso impávido ministro da Economia.

Em primeiro de janeiro de 2019 tomou posse no Brasil não só um governo, mas também um nova logorreia. Com a ajuda das redes sociais, em pouco tempo o baixo calão transformou-se numa espécie de poesia dos iletrados. Frases carecem de verbo, de sujeito, de predicado e de objeto. E quase sempre de sentido.

É fenômeno recente. No Congresso dos anos 60 tínhamos Carlos Lacerda, Afonso Arinos, San Tiago Dantas, Almino Afonso, Darcy Ribeiro e tantos outros que conheciam as regras da concordância verbal e nominal por mais que discordassem em idéias e programas.

Não pensem que defendo o preciosismo vocabular com que ainda nos assustam alguns membros do Judiciário com jargão rebarbativo e excludente. Vade retro.

Apenas percebo que um povo que fala e ouve uma língua estropiada tende a acolher sem crítica ideias igualmente rasteiras sem perceber que o debate político se esfuma nos vapores mercuriais dos comportamentos ditos primários, lombrosianos.

Não sou tão ingênuo que não veja a quem beneficia uma sociedade que substitui o diálogo por grunhidos e busque na violência e nas armas a solução para impasses políticos e sociais. Obviamente, os vencedores são os autoritários, os que nos pretendem dobrar pelo medo, pela ameaça, pelo arbítrio.

Consequência colateral deste quadro zoológico é a facilidade para incutir na sociedade ideias e propostas revestidas de autoridade incontestável, a tornar quase impossível o debate construtivo sem levantar suspeita de subversão e tentativa de insurreição. Assim vivem os estados totalitários, onde o regime do chicote só beneficia os que estão do lado do cabo.

Felizmente, estaria a instalar-se um sentimento crescente de desagrado com os magros resultados de nossa política econômica e de nossa desastrada política social. Nada poderia ser mais alvissareiro do que uma ampla rodada de debates e discussões sobre o que queremos e para onde nos levará a política econômica imposta há quase quatro anos, sem que os índices de bem estar ou de crescimento econômico se modifiquem.

Talvez só a retomada de um diálogo franco com a ativa participação da sociedade poderá evitar as escancaradas injustiças sociais que se espalham em nossas cidades como verdadeira pandemia.

Economia hoje no Brasil é verbo intransitivo e intransigente. Reformas administrativas e tributárias anunciam-se com o estigma de cortes de salários e aumentos de impostos diretos ou indiretos. Não se fala em reduzir uma desigualdade social aberrante nem se comprova que a venda de ativos de nossa sociedade é indispensável e necessária. Será mesmo? Ou estamos diante de uma ideologia anti-social travestida em ciência, embrulhada em percepções equivocadas que apenas aumentam a miséria de milhões em nome do abusivo enriquecimento de poucos?

Mais do que nunca o debate democrático se impõe. Em nossos centros de estudos públicos e privados nas Universidades e nos partidos. E sobretudo no Congresso nacional onde finalmente se decide o futuro de um país que até hoje sofre consequências de uma colonização predatória, que alguns pretendem perpetuar sob o manto ilusório de uma modernidade madastra. Sem falar no encantamento de uma política externa com a submissão e o reles servilismo.

Impõe-se o esforço de repensar o Brasil antes de aprofundar o perigoso abismo de divisões ideológicas ou simplesmente matreiras com que estamos convivendo.

E como diria Machado, melhor ainda será fazê-lo com a pena do civismo e a tinta da civilidade.

*Embaixador aposentado