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O Senhor da Morte Insuspeita

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Imagine que você joga golfe. Imagine que você é o presidente da maior potência militar do mundo. Imagine que você está errando muitas tacadas nesta manhã ensolarada na Flórida. Seus amigos de fé, sempre a bater palmas e o chamar de Tiger - uma indireta benévola como se você tivesse a mínima semelhança com a técnica e a elegância de Tiger Woods - já estão quietos demais e parecem engolir sorrisos de escárnio desta última tacada que isolou a bolinha nos pântanos. Você sente um certo suor frio no Ego e tem vontade de estraçalhar o pobre do jovem inexperiente que lhe ofereceu o taco errado naquela jogada crucial.

Através de suas lentes Ray-Ban special edition, você percebe que seu ajudante de ordens, fardado e em passos marciais, aproxima-se com um envelope pardo na mão. Discretamente como um paquiderme, você se afasta em passos lentos para fora do circulo de áulicos, mas a uma distância matemática, em que a brisa da manhã possa tornar audível seu diálogo com o militar, que já o saúda com a continência ao comandante em chefe.

Você abre o envelope, lê as primeiras linhas e teatralmente retira seu óculos Ray-Ban special edition e levanta os olhos para os céus como se dissesse “Pai, por quê?”. Seus áulicos interrompem as conversinhas e parece até que o ar se congela e um frio inesperado provoca arrepios no "chef de cuisine“ do clube de golfe, embora esteja rodeado de caçarolas e frigideiras escaldantes.

O ajudante de ordens retira da pequena mochila o que parece um pequeno computador com a inscrição “The President“ em azul no fundo branco. Você espera o ajudante de ordens teclar alguns dígitos, e, então você digita mais três, como em “OK. Tá?”. O ajudante de ordens bate de novo a continência presidencial e se retira em passo de marcha. Você volta lentamente ao circulo de áulicos. Eles olham encantados e curiosos. Você vê a bolinha branquinha na grama, estica a mão enluvada para o taco, contorce o corpo com a torção de uma torre prestes a desabar. A bolinha voa como um pássaro esganado e pousa em pane a cinco metros do oitavo buraco. “Tiger, Tiger, Tiger “ gritam os áulicos, conscientes de que acabam de entrar num novo mundo.

Em uma caverna blindada nas montanhas Rochosas, sua mensagem entra nos circuitos crípticos de imensos computadores que em poucos segundos abrem diante da tela de uma televisão de 60 polegadas a imagem de um comboio de carros prestes a deixar o aeroporto de Bagdá. Com tranquilidade de um cirurgião operando um tumor cerebral, o oficial de plantão avança dois pequenos manetes e observa o enquadramento do alvo na tela. Quando ouve nos seus auriculares a voz robótica “target in focus” ele apenas aperta com o polegar um botão vermelho como a ignição de uma motocicleta. Em trinta segundos a tela do televisor mostra a coluna de chamas subindo numa enorme nuvem preta nos céus do Iraque.

Você está sentado à mesa com seus áulicos e tem diante de si um enorme "T bone steak" texano, mal passado. O sangue do bife escorre por seus lábios leoninos, que você delicadamente enxuga com um guardanapo de linho, e ouve no ouvido esquerdo a mensagem de um outro ajudante de ordens. Diante do olhar curioso de seus áulicos, você cansativamente responde o refrão de sempre: "ossos do ofício".

Meia hora depois, os jornais, televisões, Facebooks, Instagrams, radio amadores, rádios militares que alcançam submarinos nucleares mundo afora transmitem a notícia que enche de medo o mundo civilizado.

Em rede universal, você em voz monocórdica como um pastor sem fé, espera aplausos pela coragem de ter enfrentado o dragão da maldade. Por ter desmontado um acordo antinuclear a duras penas costurado por seu antecessor com aquela alma secular de escravo temeroso. O Ego boia numa piscina de ódio racista.

Haverá guerra? Qual será a reação do Irã? Pegarão fogo as reservas de petróleo da Arábia Saudita? Os do Iraque? Será finalmente a Venezuela invadida? Nosso pré-sal será o pasto de povos piratas?

Estadistas perplexos com a notícia sequer pressentida, escarrada no recesso do Congresso Nacional, movimentam pesadas e irritadas máquinas de bom-senso empenadas há muito pelo senhor das mortes. Esforço inútil diante de uma massa cinzenta a aplaudir tambores batidos por temores medievais.

O que terá havido, que insânias teriam surgido nas últimas 48 horas, no nascer de um ano novo mal parido? A justificar os dardos mortais vindos do espaço, desafiando a prudência de pelo menos dois presidentes anteriores que disseram não ao risco de uma guerra em que todos perdem?

Ninguém sabe. Para cúmulo, a questão que sobressai é o impacto eleitoral. Jogada de mestre. Ou tacada de um louco? As "fake news" estão na estrada, que, se não for hoje, amanhã nos levará a todos à extinção e à poeira cósmica. Ao Nada.

E em outras galáxias, onde habitam mundos por nós desconhecidos, entraremos nos verbetes dos livros escolares como a estranha terra dos terráqueos em que se suicidaram todos.

Explodindo um belo planeta azul. E redondo.

* Embaixador aposentado