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A torta de nozes a nós encara

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Nos meus tempos de criança - estou falando dos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial - a noite do 24 de dezembro era a mais esperada do ano. No Rio se andava em ônibus a gasogênio. Morávamos numa casa de claraboia com motivos mouriscos e uma vetusta mas portentosa amendoeira diante do portão. Era em Copacabana, numa rua hoje desfigurada pela anarquitetura e pelos assaltos. A casa de altos e baixos, como então se dizia, cedeu espaço a um arranha-céu metido a neoclássico. Não sei que fim levou minha claraboia. Espero que ainda fascine algum outro menino de quatro anos a acompanhar o traço da lua numa noite clara e sem aviões.

À ceia de Natal sempre vinham, depois da missa do galo, parentes distantes e amigos próximos. Alguns de terno de linho branco120, pois era de bom-tom pisar na espuma do mar nas primeiras horas da madrugada. Um exótico e pernóstico primo de enésimo grau sempre portava um chapéu Panamá. E bengala com cabo de prata. Anos depois, desconfiei se não seria um personagem dos Maias, do Eça de Queiroz. Queiroz? (nada a ver, gente)

O grande ator trágico era o peru, que, depois de passar conosco algumas semanas como barítono de opereta, companheiro diuturno de nossas provocações irresponsáveis, aparecia indecorosamente nu e bronzeado após uma bebedeira monumental que o fazia tropeçar nos desníveis do quintal e de sua dignidade altiva. Meu irmão jurava que ele antecipava a morte e que nos descompunha por nossa traição, antropofagia e a indignidade de fazê-lo beber como se fosse da casa para depois degolá-lo num gesto inesperado e sangrento. Dele pouco comia, fartando-me com o arroz e a farofa de passas. Éramos todos alegres e despudorados carniceiros, vestidos em nossas roupas dominicais e nossos sapatos de verniz.

As tias, múltiplas e faladeiras, ajudavam na decoração da mesa, sempre coberta de uma toalha bege da ilha da Madeira, que só saía do gavetão em raríssimas ocasiões. E havia a indefectível torta de nozes que nos trazia sempre a mais frágil das senhorinhas de então, carinhosamente chamada de vó por crianças e marmanjos, embora dela não se conhecesse nem varão nem prole.

Faria um papel impecável num filme noir inglês, tal o seu sorriso enigmático e os beliscões supostamente carinhosos que plantava nas bochechas de minhas irmãs, primas e até vizinhas. Sempre acompanhados de uma interjeição em falsete “mas que rica, essa diabinha”. Dela era o momento tenebroso da noite, quando anunciava que iria dar a primeira fatia de sua torta de nozes para….mim.

Hoje já me recompus com as tortas de nozes. A dela era seca, áspera e as nozes duríssimas uma ameaça a frágeis dentes-de-leite. Mas, a vovozinha ficava a me inquirir com aqueles seus olhos verdes, amadurecidos de melancolia, com a interrogação sempre engatilhada: “e então; uma delícia, né?“. Um porre aquela torta, que eu lavava goela abaixo com o guaraná, avô do uísque que, em natais da maturidade, me fazia esquecer das tortas vias da vida.

Neste natal de 2019, muitas tortas nos encaram. Vai ser difícil encontrar os neoliberais tão enternecidos com o vigoroso crescimento do PIB brasileiro a roçar o 1,5% e, ano que vem, atravessar o maravilhoso patamar dos 2,5%.

Vai ser difícil esta ceia de Natal. Não tanto pelas tortas mas pelos papos. A gente vai ficar naquele cerca-lourenço em que se elogia o botox da cunhada, a barriguinha do compadre até o fatal encontro com os novos centuriões da economia chicagona de Guedes e caterva. Quem já andou em campo minado, sabe muito bem que qualquer passo em falso e…

Mas se pelo menos fizéssemos um acordo não escrito de que estamos diante de um Natal de grandes dúvidas? Que tal se reconhecêssemos ainda que silenciosamente que o tempo das certezas se evaporou como fumo de ópio opiniático? Que tal reconhecer que temos grandes dúvidas? Inclusive dúvidas sobre nosso decantado bom-senso prudencial. Onde nos metemos em que os caminhos de saída se perdem em intermináveis labirintos semeados de desfaçatez e da mais abjeta e rastaquera visão de mundo? Estaremos mais próximos de um cenário como o que antecedeu a “drole de guerre” que marcou os anos iniciais do século XX ou estamos, como parece crer o nosso ilustre chanceler, às vésperas da revolução comunista na América Latina? De tempos em tempos, me pergunto porque o chanceler não compra um chapéu Panamá e uma bengala de castão de prata. Não chegaria a ser um personagem do Eça, mas faria sucesso num anúncio contra a gota.

Enfim, façamos um Natal das dúvidas. Não daquela poética “sombra de dúvida” no estilo Frank Sinatra de cantar “the shadow of your smile". Nada disso. Dúvidas pesadas, negras como nuvens que geralmente transformam nossa pujante São Paulo num eclipse de sol, antes do aguaceiro fazer do Tietê um riacho de miséria em meio à opulência dolarizada.

Dúvidas de que alguma coisa vai mal quando nosso ministro do Meio Ambiente se vangloria de ter jogado no capacho o nome e o trabalho de uma geração de servidores públicos respeitada no mundo pela coerência e com sentido de ridículo. Pois é coronel, ridículo. Lembra dele? Anda por aí envergonhado, por se sentir tão ridicularizado.

Tenhamos outras dúvidas, menores. Será que a terra é plana mesma? Será que Trump é mesmo o salvador do Ocidente? Será que o posto Ipiranga está certo ao querer vender a Eletrobrás, a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o prédio monumental do Ministério da Educação no Rio de Janeiro? Aliás, para que serve a Educação? A vida não é tão melhor sem este bestialógico da sintaxe da língua portuguesa? Porque não se pode dizer “houveram presidentes no Brasil?". Não é tudo igual mesmo? Que frescura.

Enfim, Natal das dúvidas, gente. Nada de brigas. Nada de confrontos. Quem sabe com uma dúvida aqui outra ali, a gente acaba se entendendo e escorregando na real. Olha só que maravilha, a gente concordando com alguma coisa na última semana do ano. E formar uma frente ampla da sensatez.

Melhor que isso só uma boa rabanada salpicada de açúcar.