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Maré Montante

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A iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, de percorrer algumas organizações multilaterais internacionais de que o Brasil é membro, sugere cautelosa esperança. A ida de Sua Excelência à Argentina pouco antes da posse do novo presidente daquele parceiro estratégico do Brasil em muito terá contribuído para a decisão de o Brasil se fazer representar de forma adequada numa cerimônia em que os interesses permanentes do Estado sempre devem sobrepor-se a inclinações ou ideologias políticas.

Rodrigo Maia tem-se revelado um político à altura das horas difíceis que o país está vivendo. Óbvio que muitas de suas percepções sobre o melhor futuro para o Brasil são passíveis de controvérsia, como é natural nesta fase de embates ideológicos que assistimos no Parlamento e fora dele.

Sua maior credencial reside porém no seu inquestionável compromisso com o Estado Democrático de Direito e sua firmeza na defesa do papel do Legislativo na condução dos destinos nacionais. Essas duas credenciais fazem de Rodrigo Maia um Presidente da Casa do Povo suprapartidário e respeitado por sua clareza no enunciado de suas posições.

Convenhamos que nos tempos que correm, em que a língua pátria é a primeira, mas não a única, a ser cotidianamente traída, distorcida e apequenada não é coisa de somenos. Rodrigo fala o que pensa mas ao contrário de muitos, pensa antes de falar.

Vejo sua viagem ao exterior como fruto de sua reflexão sobre os mais que lamentáveis desatinos de nossa política externa nos últimos onze meses. Pouco a pouco a imagem de nosso país se torna não só patética nos foros internacionais - nosso voto a favor do embargo contra Cuba é o mais recente exemplo - mas também perigosa para a economia brasileira com riscos de perdas substanciais seja por inação seja por ação. Ambas indevidas, ambas pouco elaboradas, ingênuas umas, arrogantes outras. Essas últimas sobretudo em temas rigorosamente de interesse global, como meio ambiente. E direitos humanos.

Numa primeira entrevista a jornais brasileiros, já em território europeu, Rodrigo Maia não usou subterfúgios: nosso chanceler está aquém das obrigações e desafios do cargo a que foi guindado. E indaga, em eco à indagação que nos fazemos todos, o porquê de nossa política externa se mostrar tão dócil às brutalidades de Trump e tão sensível às críticas sobre a desastrada política ambiental e em particular sobre nosso anti-cientificismo às teorias sobre mudanças climáticas.

Sem caricaturar por demais o pensamento político e sobretudo geopolítico do governo brasileiro, estamos vivenciando um retorno ao passado, onde imperavam as teorias surradas da guerra fria, do efeito dominó e até mesmo do fantasma da revolução comunista. Nossa política cultural assusta pela microcefalia e pelo distanciamento das expressões mais genuínas da arte brasileira. Enfim, sejamos francos: estamos numa fase de semeadura do autoritarismo e de maré montante do arbítrio e da insegurança jurídica, pois é impensável que se dê curso livre a insinuações de o regime deve ser estrumado pelo famigerado AI-5, que se nos ocorra a aceitação de impunidade do braço armado das forças do Estado, seja no âmbito estadual ou federal.

E é obvio que a diplomacia brasileira tem uma parte que lhe cabe nesta cova cavada. Sejamos igualmente justos: nesta cizânia movem-se atores extra-Itamaraty, como os responsáveis pelo meio ambiente e sobretudo o onipresente ministro da Economia.

Ainda outro dia, ouvimos a parolagem do senhor Marcos Troyo a tecer loas ao excelente resultado obtido pelos negociadores brasileiros nas negociações do acordo dito de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Sinal indiscutível da maturidade brasileira, tonitroou o brilhoso negociador. De bate-pronto, emendou o Ministro Guedes, ao dizer todo pimpão, que bastou acabar com as impertinências do antigo ministério da Indústria e Comércio para se superarem divergências comezinhas por mais de vinte anos. Esqueceu-se de recordar nosso ministro da Economia que coube a ele abocanhar os antigos ministérios da Fazenda, da Indústria e parte substancial da competência do Itamaraty e neles todos instilar a gosma neoliberal a fim de supostamente sanar antigas diversidades de percepções entre segmentos importantes de nossa sociedade. O ministro confunde formação de consenso com dicotomia entre seu Ego e seu super-ego. Ambos majestáticos. Ambos infalíveis.

É exatamente nos embates do nosso comércio internacional que a presença de Rodrigo Maia se impõe como chefe de uma das casas que deverá examinar a propriedade e a equidade de acordos internacionais submetidos pelo executivo à ratificação imposta pelo Constituição. A Câmara dos Deputados não poderá permitir-se o simples exame formal dos atos internacionais em fase de conclusão. Ao contrário, nossos parlamentares deveriam comparar os objetivos de desenvolvimento inscritos em nossa Constituição com as amarras estabelecidas nos acordos internacionais, que, uma vez ratificados, revogam as disposições legais que com ele conflitem.

Não terá passado despercebido sequer ao mais nefelibata de nossos Congressistas a debochada manifestação de um negociador inglês do Acordo de Livre Comércio, ao comentar terem sido tantas e tão profundas as concessões dos negociadores do Mercosul às demandas da União Europeia que parece quase um crime contra os países do Cone Sul.

Seguramente o presidente da Câmara dos Deputados me relevará sugerir que o exame desses acordos seja previamente objeto de audiências públicas em que todos os segmentos interessados se façam representar. Algumas das cláusulas do acordo são muito mais aceitação de regras oligopolistas do que de livre-comércio, em especial as relacionadas com a proteção abusiva de patentes farmacêuticas. Aprovadas, essas cláusulas implicariam no imediato encarecimento dos medicamentos mais usuais para crianças e idosos, os extremos mais vulneráveis da vida humana. Mas, há outros aspectos leoninos nas licitações governamentais, no movimento de capitais, no investimento de capital estrangeiro com regras discriminatórias ao desenvolvimento industrial brasileiro. Enfim, anunciado como um instrumento de livre-comércio, o acordo Mercosul-União Europeia é um renascimento do protecionismo consentido de estilo neocolonial. Vestido de azul e branco parece tão vantajoso como a política do chamado incentivo ao primeiro emprego, que retira direitos trabalhistas de um lado e eviscera o auxílio desemprego do outro. Tudo em nome da boa ciência econômica, que vem colorindo as praças do mundo de sangue e ódio.

No momento em que o ministro da Economia declara ser impossível implementar políticas sociais por estar falido o Estado brasileiro, parece-me incompreensível aceitar propostas que recusamos durante vinte anos. Ao contrário da política laxista que estamos adotando nessas negociações, o interesse brasileiro se situa numa atitude compatível com a realidade social e econômica de nosso país.

Até porque, como estamos vendo, uma subserviência aos interesses hegemônicos só nos tem granjeado ora tapinhas nas costas ora pontapés mais abaixo.