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Mulheres empilhadas: quando a ficção reflete a realidade

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Daniela Eduarda Alves, Taita Gomes, Lilian Maria de Oliveira, Alessandra Fernandes Silva, Tatiana Spitzner. Todas mulheres reais. Todas vítimas de feminicídio. Todas assassinadas pelo fato de serem mulheres. Todas fazem parte das estatísticas que colocam o Brasil no quinto lugar entre os países em número de mulheres mortas pelos maridos, namorados, companheiros. Todas mulheres empilhadas no novo romance da escritora Patrícia Melo. O título é forte, cirúrgico. São cadáveres resultados de uma estrutura que transforma a mulher em objeto de controle e de poder dos homens. E aquelas que não aceitam, e em algum momento se rebelam ou questionam uma autoridade imposta desde antes do nascimento, se transformam em corpos empilhados nas notícias, nos números, nos inquéritos, nos processos.

“Toda mulher tem um episódio de violência para contar. Podem ser em níveis diferentes, mas os fatos sempre existem”. As aspas de Patrícia Melo dão a dimensão do problema enfrentado todos os dias por mulheres no Brasil e no mundo. “A vítima lida com várias camadas de silêncio: ela mesma – que muitas vezes demora a enxergar que é alvo de abusos –, a família, a sociedade como um todo, as autoridades”.

Em um dos casos reais relatados pela escritora em “Mulheres empilhadas”, a polícia foi acionada oito vezes por vizinhos que ouviam os gritos da mulher agredida pelo marido que viria a se tornar assassino horas depois. Do outro lado da linha, a afirmação repetida do atendente de que a ocorrência havia sido registrada e que, assim que possível, uma viatura seria enviada ao local. O caso foi divulgado pela imprensa à época, inclusive com as gravações das ligações à polícia. Em outro crime lembrado pela autora, uma mãe foi morta a facadas na frente dos filhos. Em outro, a mulher acabou asfixiada após sofrer várias agressões físicas e ser arrastada pelo marido. São as vítimas do feminicídio no Brasil. São as mulheres empilhadas.

Mas, como foi dito neste texto, o livro é de ficção. Pelas mãos da escritora – que já recebeu diversos prêmios, entre eles o Jabuti, aqui no Brasil, e o Deutscher Krimi-Preis, na Alemanha – é construída uma narrativa em que mulheres formam uma sociedade que persegue e julga os criminosos beneficiados pela impunidade da vida real.

Patrícia Melo ressalta que esses homens – tantos os reais quantos os personagens da ficção – “não são monstros”, como muitas vezes são tratados pela imprensa. São pessoas de carne e osso, sujeitos de uma sociedade patriarcal em que o homem manda e a mulher obedece. Sociedade que é retratada em todo o romance, que escancara a falta de punições justas aos assassinos.

Além dos casos reais, que abrem os capítulos, o livro é recheado por um cenário onírico, onde mulheres de uma tribo amazônica guerreira lutam contra homens opressores. A protagonista – uma jovem advogada que viaja até o Acre para acompanhar um mutirão de julgamentos de assassinatos de mulheres – se une a essas guerreiras, o que garante à obra muita ação e um toque de humor ácido.

É a literatura a se inspirar na vida. É a ficção construída nas páginas de um livro a ilustrar os fatos reais que pesam todos os dias nas páginas de jornais e sites de notícias. É uma mulher a gritar por todas as outras. Um romance urgente que instiga e denuncia.

* jornalista, pesquisadora e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo