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A hora e a vez da Constituição

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No domingo passado argumentei que este novembro ficaria em nossas memórias por muitos e muitos anos. Alguns me indagaram se estava indiretamente me referindo à libertação do ex-presidente Lula.

Recordei-lhes , apenas, que todos os brasileiros deveriam festejar a reafirmação categórica do primado constitucional. A manifestação reta e inatacável do mandamento constitucional sobre ideologias ,majoritárias ou não, nesta República com quase século e meio de existência. A constatação de que só o Supremo Tribunal Federal pode dissipar dúvidas sobre o texto constitucional, sejam quais sejam as preferências e motivações de segmentos políticos da sociedade. E mais, só o acatamento da decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal pode nos garantir a fruição maior do Estado Democrático de Direito.

Não me surpreendeu portanto que em seus comentários e discursos, tanto o Presidente Bolsonaro quanto o ex- Presidente Lula, tenham ambos não só aceitado a decisão da Corte Suprema, o primeiro, e desestimulado ,o segundo, quaisquer tentativas de impeachment do presidente legitimamente eleito.

. Ambos reafirmaram respeito ao ritual democrático, ao mesmo tempo que assinalavam suas divergências políticas sobejamente conhecidas. Foi um momento em que o ódio abriu espaço para a concertarão da sociedade em torno de projetos e ideais. É mais um sinal de racionalidade que nos traz este novembro.

A maioria da sociedade brasileira já não mais suporta o festival tragicômico de infindáveis acusações recíprocas entre defensores e opositores do governo e dos políticos em geral. Acusações que chafurdam em pocilgas da violência, do desrespeito aos mais elementares princípios da convivência social. Nós, brasileiros , estamos regredindo na escala civilizatória.

Confundimos veemência com brutalidade. Diálogo com humilhação. Plantamos a cada dia, ingênua e toscamente, as sementes da dissidência irreconciliável. Do inimaginável contencioso fratricida.

Mal soado o martelo do Supremo Tribunal Federal ,continuam a florecer ideologias do fanatismo pseudamente ilustrado. Nosso sempre criativo ministro da economia inunda o Congresso Nacional com uma multiplicidade de propostas de emendas constitucionais, aparentemente destinadas a induzir o crescimento econômico do país e a diminuir a desigualdade social.

Uma das propostas, nobremente intitulada de apoio aos jovens sem emprego, suscita de imediato e de todas as partes, sinais de aprovação e a esperança de que, finalmente, nosso posto Ipiranga teria adquirido em algum brechó da Lapa uma tintura de alma solidária. Ledo engano. Uma leitura superficial da proposta nos revela entranhas maquiavélicas, embora de um Maquiavel de pastiche , onde o financiamento do emprego dos jovens decorre de imposto arpoado no auxílio-desemprego dos idosos. Uma espécie de parricídio consentido e promovido pelo Estado. E assim, de leitura em leitura, as propostas de mudanças constitucionais se revelam armadilhas sorrateiras sobre direitos fundamentais garantidos pela Carta de 1988.

Não pretendo aqui analisar estas propostas. Todos sabemos que a tributária, reforma tudo menos a desigualdade social. Que a administrativa pretende transformar servidores civis em servos da gleba de senhores feudais, eventualmente no comando de repartições públicas. Em resumo, à demolição do Estado segue-se o embalsamamento do servidor público, ameaçado por demissão sem o devido processo legal. E, obviamente, sem culpa ou dolo, apenas uma aferição discutível sobre mérito e competência, hoje usual e democrática em cursos e aperfeiçoamentos institucionais.

Pretendo simplesmente ilustrar— e isso ocorre em outros segmentos do poder instalado— que a sociedade brasileira está sendo mantida numa espécie de banho-maria aquecido pela angústia e pelo medo. Impossível deixar de identificar a cada dia conhecidas técnicas de autoritarismo de um passado não muito distante. A ideologia neoliberal se permite insistir em defender a liberdade, quando nos cobre da mais abjeta das solidões: a perda do emprego, a impossibilidade de ganhar com o suor o pão de cada dia, a descrença nas reais intenções do governo que ora nos enfeitiça com a promessa de retomada do investimento ora nos pede paciência franciscana de monges .

Os neoliberais, de penacho ou sem ele, nos acham estúpidos, fáceis de cair na conversa mole de vendedores de sapatos furados. Não se apercebem que esta logorréia delirante contribui em muito para o descrédito com que encaramos promessas vazias e horizontes nebulosos. A mentira provoca justa e incontida revolta. E nem os abutres financeiros se deixam por ela enfeitiçar.

A tentativa de usurpar direitos inalienáveis inscritos na Constituição de 1988 é crime de lesa-pátria. Falta de caráter, quando feita de forma sub-reptícia, com mão de gato e cinismo de banqueiro de roleta russa. O que estamos vendo no Chile é o último exemplo de revolta social decorrente da imposição de uma política econômica reducionista e desalmada. Tentar escamotear este óbvio ato de rebeldia social como se fosse a manipulação de extremistas, de esquerda ou de direita, apenas acentua a insensibilidade cívica de extremistas neoliberais.

No Brasil, é a hora e a vez da Constituição. De sua defesa por todos nós, em especial por nosso Congresso, eleito para respeitá-la e não para deformá-la. Nesta hora, só uma frente parlamentar de oposição madura e civilizada, centrada na Constituição de 1988, nos evitará continuar numa política de insanidades que desemboca na anarquia e invoca o autoritarismo. Só não vê quem não quer. Nosso futuro depende do estrito respeito ao Estado Democrático de Direito. Fora daí, mergulhamos na baderna e abrimos nossa terra e nossas riquezas à pilhagem pirata de empresas e países. Em nome da pós - modernidade embrulhada no papel de presente da globalização predatória.

Faltou falar da nossa irrelevante política externa. Mas, o espaço acabou. E a política externa também.