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A crise de identidade brasileira

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Qualquer que seja sua orientação política, você, todos nós, somos forçados a reconhecer que este novembro ficará, para o bem ou para o mal, em nossa lembrança por muito, muitos anos. Há nele qualquer coisa similar a momentos irreversíveis em nossas vidas pessoais, como a descoberta de um amor ou a triste constatação do fim de outro.

Momentos paralisantes, até que deles surja a consciência de que temos a enfrentar um novo caminho por mais assustador que seja. Uma espécie de vestibular para a maturidade, cuja reprovação sequer pode ser imaginada. Assim, vejo este momento no Brasil.

Serei eu romântico? Um idealista empedernido, que não consigo me acostumar com a natureza humana sempre atraída pelo brilho ofuscante do ouro imediato? Não deveríamos eu, você, todos nós continuarmos como se nada tivesse havido, nada nos houvesse profundamente envergonhado e de tal forma contaminado o nosso olhar que nossa única alternativa será a opção pela cegueira?

Como desconhecer neste mês de novembro que relatórios sóbrios e factuais nos esfregam na cara índices impensáveis de abjeta pobreza de milhões de brasileiros, crianças desnutridas e sem escolas, como se este quadro social famélico fosse tão natural quanto o suceder da noite pelo dia?

Como receber com naturalidade essa injustiça social e aceitar compungidos que as reformas constitucionais que nos propõem os sábios deste governo são necessárias para um equilíbrio fiscal que nos desequilibra a dignidade de viver lado a lado com essas crianças sem futuro, senão nas presas do crime a lhes garantir um símile de vida?

Como aceitar que o Estado, dito Democrático de Direito, possa ser o carniceiro que nos sugere ser inviável construir um país nestas paragens, mas que, ao contrário, é necessário e aconselhável vender suas empresas estatais, ou quase, como a Petrobras, flutuando num mar de riqueza? Para que serviu vender a então Vale do Rio Doce e vê-la transformada numa torrente de sangue, lama e lágrimas, por incúria, por desleixo, por esperteza? Por que até hoje não se apuram responsabilidades em Brumadinho, nem em lugar algum?

Como aceitar que a proposta de reforma tributária neste país, com abissal desnível social, sequer arranhe, sequer sussurre que os bilionários deveriam pagar um pouco mais do que pagam os assalariados? E por que a reforma administrativa promete acabar com a estabilidade do servidor público ou transformá-la num compadrio mafioso? Em que manuais de economia estudaram nossos sábios economistas em que a variável pobreza só aparece como literatura refratária aos elegantes torneios de redução de custos e maximização de lucros?

E por que nos mentem tanto esses salvadores da pátria que já por quatro anos nos prometem um desafogo, uma migalha de desenvolvimento e continuam a nos iludir com um futuro próximo em que encontraríamos o Potosi ?

E por que nossos governantes acreditam que uma aliança subalterna com um hegemônico nuclear nos levaria por encanto a um nirvana onde choveria o maná? Será que os responsáveis por nossa politica externa acreditam que a comunidade internacional, as Nações Unidas, acharam brilhante e corajoso nosso voto a favor da manutenção do embargo econômico contra a humilde ilha de Cuba? Será que nosso embusteiro chanceler - chamo-o embusteiro porque não acredito que quem tenha passado em concurso público dos mais exigentes no mundo - tenha a pachorra de não saber o peso da politica interna americana neste embargo contra Cuba. Não acredito que ele não saiba que votar com os Estados Unidos e com Israel nesta resolução nos coloca contrários à própria Carta das Nações Unidas. Será por vergonha que nosso chanceler mandou para os cafundós do Itamaraty o busto de San Tiago Dantas, cujo discurso pronunciado na Conferência da OEA em 1961, que expulsou Cuba daquela organização, é uma declaração que até hoje honra a independência e a dignidade da Diplomacia brasileira? Releia-o, ministro, e veja a que círculo do inferno o senhor levou este país. Mas, lembre-se, aqui se faz , aqui se paga. Confira com o ministro da Economia.

Mas, neste novembro, na esteira dos passos mais bêbados de nossa elitíssima, nobiliárquica e anárquica engrenagem política, eis que uma dúvida se assentou finalmente no espírito e nos cérebros daqueles que têm diante de si a guarda dos bons costumes e a garantia do processo civilizatório. Uma dúvida que também os envergonha porque entreabriram portas sabiamente fechadas e deixaram entrar por suas frestas, travestidas de modernidade, os mecanismos inquisitoriais mais espúrios e a jurisprudência mais indiferente à robusta prova dos fatos dar espaço à convicção arbitrária e ao abuso de poder. E daqui e dali começaram a brotar suspeitas e evidências que em nome do pecado se santificava o sacrilégio. E em nome da liberdade se acalentava o arbítrio. E em nome do progresso se semeavam os vermes da rebelião que hoje se espraiam, como manchas de óleo, pelas praças de Paris, de Madri, de Santiago, tingidas de suor e sangue de irmãos contra irmãos.

E, desta dúvida, surge o momento irreversível. Talvez, o último momento em que as badaladas do destino batem às nossas portas como bom mensageiro .Agora, a decisão é sua, minha, de todos nós.

E dela dependerá a real independência do Brasil e seu encontro com países que saibam fazer de seus territórios o espaço privilegiado de homens e mulheres solidários e companheiros nesta viagem que chamamos vida.

*Embaixador aposentado