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Parem de nos matar!

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As mulheres continuam a ser mortas por motivos diretamente ligados ao fato de serem mulheres. Ou seja: o feminicídio segue a galope esfregando os assassinatos na cara fria da lei. É o que mostra o último mapa da desigualdade divulgado pela Rede Nossa São Paulo, instituto que realiza pesquisas em conjunto com órgãos oficiais. De acordo com o estudo publicado essa semana, os casos de feminicídio cresceram 167%. Chama atenção, como sempre, o fato de regiões periféricas de uma grande capital do país apresentarem taxas muito maiores do que bairros de classe alta. Nesta pesquisa, especificamente, a região central foi a que registrou maior número de crimes contra a mulher; o próprio instituto lembra, entretanto, que esse tipo de violência ainda é subnotificado, o que pode explicar o motivo de regiões menos favorecidas economicamente não estarem no topo da lista.

Outro dado relevante, quando se pensa na situação da mulher em todo o país, é a quantidade de mães adolescentes. Nesse caso, a diferença entre o número de mulheres que deram à luz com 19 anos ou menos é de até 18 pontos percentuais entre as áreas mais e as menos favorecidas socialmente. A maternidade nessas faixas etárias acaba por retirar a jovem da escola, além de reduzir também as chances de inserção no mercado de trabalho. De acordo com o IBGE, em todo o país, a maioria das mães adolescentes são negras e pobres. É desesperador fazer a projeção de que essas jovens são as que correm maior risco de se tornar vítimas de feminicídio.

O assassinato de Marielle Franco reforça esse “exercício de futurologia”. Todos os desdobramentos do crime também. Uma mulher preta, da periferia do Rio, que foi mãe solteira adolescente e lutava pela melhoria na vida dos jovens abandonados pelo poder público foi alvo de ameaças, ataques de todos os tipos. E o final da história todos e todas já sabemos. Ou melhor, não sabemos. Porque, a despeito de ela ser uma vereadora, uma figura pública, e ter sido executada com quatro tiros na cabeça em uma via com câmeras de segurança, até hoje não se sabe quem mandou matar Marielle. E a história toma rumos cada vez mais sombrios. Para o Rio de Janeiro e para o Brasil.

A escritora italiana Silvia Federici, nos livros “Calibã e a bruxa” e “Mulheres e caça às bruxas” – recém lançado com o objetivo de alcançar mais e mais leitoras – reflete sobre como as mulheres eram terrivelmente torturadas, expostas presas a correntes de ferro e atiradas ao fogo, lá no início do capitalismo, após o fim do regime feudal, acusadas de serem bruxas. Os estudos da professora feminista abordam o fato de aquelas mulheres serem, em sua maioria, pobres e estarem extremamente descontentes com a situação a que foram submetidas, após as terras em que viviam em comunidade terem sido privatizadas. Muitas delas, principalmente as mais velhas, foram parar nas ruas e ficaram em situação de mendicância. As que não aceitavam pacificamente a nova sujeição capitalista eram presas, rotuladas como bruxas. Aquelas a quem foi imposto o papel de procriar, cozinhar e cuidar dos homens que produziam para abastecer o ciclo do mercado, do lucro e da exploração também deveriam aceitar tudo docemente. As que se rebelavam eram... bruxas. E deveriam ser... mortas.

Tudo isso foi lá entre os séculos XV e XIX, com apoio do Estado medieval vigente e da legislação, que previa o suplício e o martírio públicos. Hoje, em pleno século XXI, a situação é outra. O poder público e as leis estão aí para proteger igualmente todos os cidadãos e todas as cidadãs. Ainda bem.

* jornalista, pesquisadora e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo