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Recordando Albert Camus

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A mancha escura de óleo que transformou praias idílicas do Nordeste em morte e devastação de fauna e flora brasileiras, me recordou “La Peste” de Albert Camus, livro dentre os mais célebres da literatura francesa contemporânea. Descobri-o nos anos sessenta, quando se instalava no Brasil o regime autoritário, e recordo que me impressionei com a descrição da invasão de uma cidade por ratos, que, pouco a pouco, dizimam a população com o vírus de uma peste medieval. Muitos críticos apontam “La Peste” como a alegoria da invasão nazista e suas consequências funestas para os que a ela aderiram ou sucumbiram.

Escrito num estilo falsamente frio e jornalístico, acentua, pelo contraste, a miséria humana trazida pela guerra, pela indiferença social e pela aceitação passiva da subjugação pelo mais forte ou pelo aparentemente inevitável.

Como os ratos de Camus, as manchas em nossas praias pareceram-me a alegoria de nossa indiferença e descuido pelo meio ambiente, reforçada pela política arrogante que adotamos em relação às mudanças climáticas, às queimadas na Amazônia e sua escassa transparência sobre o aproveitamento da biodiversidade. A mais rica e diversificada do planeta.

Impressiona que o ministro do Meio Ambiente tenha hoje que andar mundo afora a explicar a inexplicável política de que ele se tornou um dos principais articuladores e que nos transformou em párias da comunidade internacional. Talvez se Sua Excelência tivesse lido o artigo do professor Ricardo Abramovay, “Amazônia caminho para a inovação” (Valor de 31.10.2019) e procurasse sensibilizar a comunidade internacional para os projetos que ali se delineiam, outra seria nossa imagem no Exterior.

Um dos aspectos paradoxais da filosofia política do governo é sua rejeição ao trabalho de pesquisa com universidades e ONGs em aparente defesa de nossa soberania territorial, ao mesmo tempo em que aliena, dócil e prazerosamente, a soberania econômica e financeira do país. Não é infelizmente o único paradoxo que temos a assimilar.

E quanto mais os dias passam mais me parece que estamos sendo arrastados por forças do obscurantismo a um anti-projeto brasileiro. Ou, para ser mais claro, estamos sendo envolvidos por uma mancha negra que se incrusta em nossa alma, tantas são as dissonâncias a que somos diariamente submetidos. Tantas as manobrinhas infanto-juvenis de criar um clima sufocante de terrorismo psicológico a justificar a alienação do país dos mais comezinhos protocolos da boa-vizinhança entre Estados democráticos e respeitosos da soberania popular.

O debate político estimulado por nossas maiores autoridades recorre ao vocabulário desqualificado da intimidação e da violência, onde ideias são valorizadas apenas quando aprofundam nossas divisões internas e nosso isolacionismo externo. Um guru de fancaria se permite intervir nos destinos do país apoiado numa visão doentia da realidade internacional e há os que o escutam, seguem e respeitam como se de sua boca não saísse senão pornográficos linchamentos de caráter de homens honrados que dele ousaram discordar ou não financiar projetos pessoais. Isso tudo estamos vendo e sendo forçados a conter nossa inquietação e rejeição a tão primários e sórdidos abusos do poder constituído.

Não terá sido por acaso que foram poucas e quase inexistentes as manifestações de solidariedade por parte de nossos vizinhos e de outros países que até ontem nos tinham como país invejável e admirado por sua diplomacia construtiva e universal. Hoje, tingida pela ideologia e pela estultícia, nossa política externa provoca risos e galhofas.

Diante das tristes e dolorosas manifestações do povo chileno, não tivemos a humildade de nos perguntar se a opção pelo neoliberalismo daquele país irmão nos servia de advertência para evitarmos os mesmos descaminhos sob a batuta pirotécnica de nosso ministro da Economia, que se permitiu comentar “como negar 30 anos de acerto no Chile porque houve uma manifestação?” Diante de tanta alienação política não surpreende que, sobre as políticas sociais, Sua Excelência afirme que “o erro foi ter lançado os cobertores na área social“ sem privatizar e transformar o Estado. Vamos privatizar e abrir o investimento para o setor privado”. ( Valor 31.10.2019, pág.A8).

Mas, não foi exatamente isto que o Chile fez nos últimos 30anos, ministro? É este o modelo que o senhor quer aplicar em um país com mais de 200 milhões de habitantes? Que país, ministro, vendeu todos os seus ativos, inclusive os que rigorosamente dão lucro, ao setor privado? Onde estão os exemplos de sucesso na implementação desta política? No Chile? Na Argentina? No Reino Unido?

Vossa Excelência certamente imagina um dia receber o prêmio Nobel de Economia por ter transformado o Brasil num país aberto às ilusões neoliberais. Óbvio que Vossa Excelência não aceita objeção de economistas brasileiros, pobres diabos que não gozam das mesmas luzes que o iluminam. Mas, o que será que Vossa Excelência tem contra a opinião e estudos de Piketty, que demonstrou que a redução da desigualdade passa por uma reforma tributária bem mais equilibrada da que se propõe no Brasil? Que objeção terá Vossa Excelência a Paul Krugman? A Stiglitz? A Rodrik? Só para citar alguns de seus colegas de profissão, todos, à exceção de Rodrik, prêmios Nobel, todos reconhecidamente competentes e respeitados em Wall Street e todos críticos desta política econômica selvagem que se vem aplicando ao povo brasileiro. Será que são todos imbecis que não percebem a genialidade de suas fórmulas, de loja de conveniência, que repousam numa visão irrealista do capitalismo financeiro a promover uma disparidade monstruosa entre bilionários e miseráveis? Os exemplos de fraude e corrupção por empresas privadas de ação transnacional são menos insanas ou menos frequentes daquelas cometidas por empresas estatais? São perguntas que Vossa Excelência apenas responde com o fervor fundamentalista e a astúcia dos iluminados. E a cautela da confraria.

No Brasil de hoje, estamos submetidos a duas grandes ilusões históricas. Politicamente, nossas maiores autoridades ainda acreditam que estamos vivendo a 2ª guerra fria. Nesta visão, Venezuela, Cuba e Rússia estariam insuflando rebeliões e manifestações no Chile, na França, no Líbano, no Reino Unido em nome de uma esquerda radical que só poderá ser combatida com o AI-5, como fomos alertados ainda esta semana, diplomaticamente, por nosso ex-futuro embaixador nos Estados Unidos. A segunda ilusão é a de que o Estado deve ser reduzido a uma gerência policial e militar. As empresas privadas e privatizadas se ocuparão do desenvolvimento econômico de nosso país, da escolaridade de nossas crianças, da saúde de nossos idosos. E se espalharão como as manchas do ouro negro que polui nossas praias, nossas riquezas e nossos sonhos.

A grande tarefa econômica em curso é a de diluir nossos direitos fundamentais inscritos na Constituição de 1988 e de quebra acabar com o Estado Democrático de Direito no Brasil. Esta é a grande reforma que não ousa se apresentar em toda sua transparência diante da sociedade, que sobre ela não foi consultada e para ela não deu seu voto. Este anti-projeto de país, se por nós consentido, dará às gerações de nossos netos o direito de nos excluir de suas memórias e de seus corações por termos vendido, por trinta bitcoins, a terra e o sangue que herdamos de nossos pais.

Para evitarmos este mal que nos rodeia, só a estrita obediência aos princípios constitucionais da Carta de 1988 e a consciência cívica dos que a juraram defender, poderão salvaguardar a Democracia e o Estado Democrático de Direito, que nos separam e distinguem dos Estados autoritários de extrema direita ou de extrema esquerda. A tarefa de lembrar diariamente este imperativo cívico aos representantes que elegemos para o Congresso Nacional é o dever maior da cidadania brasileira.