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A não notificação da violência e o silenciamento da vítima

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Precisamos voltar a falar sobre feminicídio. Sempre. Enquanto mulheres morrerem no Brasil e no mundo pelo fato de serem mulheres, seguiremos escrevendo, discutido e alertando para o feminicídio. Seguiremos lembrando que o Brasil é o quinto país do mundo em número de mulheres assassinadas em razão do seu gênero, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. E reforçaremos que desde o começo do ano, mais de cem mulheres foram vítimas deste tipo de crime no país.

Basta dar uma olhada nos sites de notícias diariamente para constatar o cenário hostil em que as mulheres são obrigadas a viver em todos os cantos do país. O feminicídio é o crime extremo, fatal. Mas, antes e além dele, existem outros ataques brutais a que as mulheres são submetidas todos os dias. São agressões físicas, verbais, emocionais. Dentro de casa, no trabalho, nas ruas, nas festas. Mulheres de todas as idades. Meninas. Crianças.

Mulheres são espancadas e mortas na frente dos filhos. Famílias são arruinadas, traumatizadas, cindidas. E, muitas vezes, os agressores ficam soltos, levam uma vida normal. Ou, até mesmo, viram heróis e astros de selfies em gramados de futebol em um mundo que está doente, insensível, com valores invertidos.

Pois bem. Foi em um contexto deste, em que as mulheres se unem, reivindicam, clamam pelo fim da violência, que o Senado recebeu a informação do veto ao projeto de lei que obrigava os hospitais a notificar em 24 horas à polícia os casos suspeitos de violência contra a mulher. De acordo com o projeto, o registro deveria ser feito já no prontuário da vítima, para que o caso fosse investigado. O argumento para o veto foi o de que o projeto contrariava o “interesse público”. Mas conter a violência, de todas as formas e com todos os instrumentos, também não é interesse público? Foi usada, ainda, a justificativa de que a mulher que procura os serviços de saúde não deve ser exposta ou ter o caso levado ao conhecimento policial se ela não quiser. E onde entra a subjetivação da vítima? Se ela não for objetiva e literal ao afirmar que pretende denunciar o criminoso, não vale a dor que sente por ser agredida e não conseguir verbalizar? O placar desse jogo perverso é claro: ponto para o agressor.

Ponto para o silenciamento da vítima. Que, se está com medo, se sofre ameaças ou se sente vulnerável, não irá tomar a iniciativa de denunciar. É óbvio. Muitas vezes, tudo o que ela precisa é sentir-se protegida, acolhida, segura para confirmar as suspeitas de algum tipo de ataque. Suspeitas que podem se transformar em morte se o cuidado não chegar a tempo. Ou que podem resultar em uma separação do agressor se a vítima se sentir protegida. Uma morte a menos é uma mulher a mais. Uma história a mais. Uma família a mais.

Justificativas existem, favoráveis e contrárias ao veto. No entanto, fica aqui o reforço de que o cenário de violência e os números de feminicídio são fortes argumentos para que todas as formas de proteção e de prevenção, principalmente nos hospitais, que fazem os primeiros atendimentos às vítimas que chegam doloridas física e emocionalmente, são válidas e – acima de tudo – necessárias.

* jornalista, mestranda em Psicologia pela Universidade de São Paulo e integrante do LAPSO - Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social da USP