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Obrigada, Elza

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Pouca coisa me tocou de forma tão suprema nos últimos dias quanto a apresentação de Elza Soares naquele palco enorme do Rock in Rio. Que energia, que mulher. Se Deus é mulher, Deus é Elza.

Quanta coragem. Que força, que voz, que luz. Quanta cor.

Elza é tudo aquilo que brilhava lá em cima. É raiz, verdade. Música. Inspiração. Assistir a um show de Elza Soares é de lavar a alma e os pensamentos e o coração. E o corpo. Lavar o corpo com ritmo, balanço. Lembrar o corpo desumanizado pelos corpos que ocupam o poder. Os poderes. Elza lembrou Ágatha, Marielle, Evaldo.

“Ágatha Félix tinha oito anos, o músico Evaldo Rosa levou oitenta tiros. Marielle lutava pelos pobres, pelos negros, pelos pretos. Chega”, determinou a diva lá do seu lugar de estrela, com a propriedade de quem já esteve lá no lugar do sofrimento. Lá onde o outro não nasce humanizado aos olhos de quem manda e mata. Lá onde o sujeito precisa sofrer para se humanizar. E precisa sofrer de novo e de novo e de novo. Porque esse outro só é reconhecido como corpo humanizado se for submetido ao sofrimento, à dor.

O antropólogo indiano Talal Asad, no ensaio “Reflexões sobre crueldade e tortura”, analisa o sofrimento e a dor dos corpos no contexto da colonização europeia mundo afora. E nos convida a pensar o quanto o sofrimento nativo – aquele dos povos dominados pela “superioridade” europeia em um mundo eurocêntrico – não era motivo de preocupação para os colonizadores, mas sim a produção de uma população sujeitada ou o desejo de criar novos sujeitos humanos. Fazendo a analogia com o tempo de Ágatha, Marielle, Evaldo, o sofrimento do branco é motivo de preocupação, ao contrário da população pobre e negra.

E foi a esse sofrimento imposto pelo poder “aos pobres, aos negros, aos pretos”, que Elza determinou um basta. A diva também lembrou à multidão que aplaudia cada frase dita por ela que “é preciso acordar, lutar, ir para as ruas, aprender a votar (...) Nós não sabemos votar, precisamos aprender. Esse Rio de Janeiro acabado, completamente distorcido”.

Ainda sobre o ato de causar sofrimento a alguém – lembrando que as mortes de Marielle, Evandro e Ágatha vêm permeadas pela dor e desconsolo dos familiares – cabe aqui dar uma força à evocação de Elza pela eliminação das crueldades e o fim do sofrimento social; o artigo 5 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Ah, mas os três não foram submetidos à tortura. Ora, não sejamos tão literais. Alguém nega que foram alvos de tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante? Estaria o poder, que praticou a crueldade que levou à morte, negando a definição de corpos humanos às vítimas? Para se pensar.

Mas, como esse artigo é um agradecimento a Elza Soares pela potência iluminada de seu protesto, termino o texto com as aspas-desejo da mulher que é Deus que é mulher: “gemer agora, só de prazer”. Chegaremos lá, Elza. Porque unidas a você e, mais uma vez, com as suas palavras, “nós não vamos sucumbir”.

* jornalista e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo

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Patricia Lino/Divulgação - Elza Soares se apresenta no camarote Rio Exxperience
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