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Diplomacia e dependência

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A Constituição impõe ao Presidente da República mandamentos claríssimos na elaboração da política externa brasileira. Dentre eles, ressaltam a defesa da soberania e a promoção do desenvolvimento econômico.
De algum tempo,porém, a política externa , afinada com os preceitos constitucionais, é criticada como tributária de uma ideologia esquerdista, anti-americanista e anti-ocidental. Em seu discurso de posse, o chanceler brasileiro se permitiu dizer que o Itamaraty estaria de costas para a sociedade brasileira e que correções drásticas se impunham.


Pragmático, o chanceler anunciou o alvorecer de nova era diplomática, despida de viés ideológico. Registrou a feliz coincidência de os dois presidentes das duas maiores democracias das Américas serem Bolsonaro e Trump. Ambos, ungidos para o bem do Ocidente e do planeta em geral.


Passados sete meses da posse do chanceler, a memória nacional registra episódios amadorísticos e perigosos, orquestrados pelo Itamaraty. O pior, apoio imediato e irrefletido a uma quase invasão 'humanitária' da Venezuela, foi felizmente evitado pelos militares. O mesmo vale para a anunciada transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, que nos expôs ao ridículo de perdermos gratuitamente mercados e ao risco de ganharmos ingenuamente a hostilidade do maior conflito do oriente médio. Após estas patéticas peripécias - e não devemos esquecer as reticências feitas ao relacionamento com a China - a diplomacia brasileira entrou em hibernação, para a tranquilidade e felicidade geral do país.
Eis que no fim do mês de junho, trombetas e atabaques anunciam ao povo brasileiro a maior vitória diplomática dos últimos vinte anos: a finalização do acordo dito de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia.


Um intermezzo: após a vitória da reforma da previdência em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, a chuva de investimentos estrangeiros anunciada pelo Czar da economia não se confirmou. Certo, a bolsa de valores premiou os especuladores habituais. Mas, da cutelaria Guedes e Cia não se anunciaram medidas de investimento para debelar o desemprego e retomar o desenvolvimento do país.


Sisudos economistas, até então áulicos da absoluta relevância da reforma da previdência ,fazem pequenos muxoxos e aconselham cautela e caldo de galinha. Guedes, o Czar, envernizou a vareta mágica: permitirá saques do FGTS. Beleza. Beleza. Um anticlímax diante do prometido. Um vestuário mofado, a exalar naftalina. Fecha-se a cortina.


Mas, o espetáculo não pode parar. E no anúncio do acordo Mercosul - União Europeia os jornais e os porta-vozes governamentais cospem milhões de possíveis investimentos no Brasil, como caroços de fruta do conde.Pois, mais uma vez ,torna- se necessário levantar o ânimo da tropa.
Neste momento, os focos de luz esmaecem o perfil do Chanceler e, num crescendo fulgurante, iluminam a aparição do secretário de comércio exterior do ministério da economia, Senhor Marcos Troyjo, diante de seleta banca de jornalistas de um canal de televisão.


Convenhamos. Troyjo não é Araujo, o chanceler. Fala um português compreensível e não parece coroinha de seitas obscuras de pensamentos opacos . Chama os jornalistas pelo prenome, na intimidade que se permitem os estadistas. Talvez, tenha cursado a escolinha de retórica e marketing do Dr. João Doria. Especulação minha.


Os entrevistadores revelam pouco conhecimento das entranhas das negociações do Acordo, calhamaço indigesto de algumas centenas de páginas. Troyjo vai adquirindo velocidade e altura de cruzeiro em céu de brigadeiro. Ensaia um looping aqui, uma rasante ali, e chega a pensar em abrir os compartimentos de fumaça e escrever no azul. Discorre sobre estatísticas de comércio, joga umas pitadas de geopolítica aqui e ali, contém o sorriso superior diante da visível discrepância de informação entre ele e seus entrevistadores. Pouco a pouco, como nos claros- escuros dos quadros de Caravaggio, se delineia o perfil de seu arcanjo protetor. Estamos diante de Guedes, da palavra de Guedes, da eloquência de Guedes.

Mas, não demora muito para o escorregão na resposta a uma pergunta sequer feita. Seu primeiro erro. E não seria o único. O Brasil ,diz ele ,não concedeu nada aos europeus, apenas retirou posições e propostas ultrapassadas e ideológicas. Coisas da Cepal e da velha teoria da substituição de importações.
Não acreditei no realejo metido a Stradivarius.

Troyjo mergulhava de ponta cabeça na maior ilusão deste governo: a sociedade silente, consente. Nada mais arriscado. Negociador, Troyjo sabe que se o Brasil abandonou posições da Cepal não foi em Bruxelas, mas na Rodada Uruguai, quando aceitamos a OMC e seus acordos conexos. Sabe também que as negociações Mercosul- União Europeia,como muitas outras, decorrem da pressão dos países desenvolvidos em manter mecanismo protecionistas, enquanto os países emergentes ou em desenvolvimento são persuadidos a aceitar regras mais “liberais” em temas como propriedade industrial, compras governamentais, garantia de investimentos e serviços. Fontes de renda quase monopolistas.


E nessas áreas, o Brasil cedeu. Não há nada de 'ideológico' nas posições brasileiras. A menos que se considerem ideológicas igualmente as resistências europeias à entrada de produtos brasileiros agrícolas, sem o trauma das quotas ou das cláusulas de escape.


Adiante, Troyjo tergiversou sobre a política de meio ambiente no Brasil. Os exageros e erros nesta área só não são maiores do que o descaso com as políticas sociais de amparo aos pobres, aos desempregados, aos idosos e aos recém-nascidos e suas mães. Preceitos constitucionais que não escaparam da Cutelaria Guedes e Cia.


A política ambientalista de Bolsonaro é criticável e criticada. Quando Angela Merkel declara fechar os olhos para assinar o acordo Mercosul- União Europeia, está dizendo em alemão de Hegel que o acordo é tão favorável à indústria alemã que está disposta a enfrentar os verdes em seu parlamento. O terceiro escorregão veio com a topada sobre um eventual acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Troyjo sabe o que nos espera na área agrícola ,onde somos concorrentes Brasil e Estados Unidos.
Na Alca, os Estados Unidos foram brutalmente transparentes; não poderiam negociar com o Mercosul cerca de 1500 linhas tarifárias e jamais poderiam sequer pensar em reduzir a zero essas tarifas “ until hell freezes over“.


Achei reconfortante a afirmação de Troyjo de que o ideal para nós seria estimular joint-ventures (?) como a da Embraer com a Boeing, transação em que ,até hoje ,não sei o que o Brasil lucrou. Perdemos engenheiros, tecnologia e uma empresa surgida do Instituto Tecnológico da Aeronáutica da qual muito nos orgulhávamos. 


Termino com uma obviedade: não se pode ser ultra-liberal ,como Paulo Guedes, pela metade. Guedes já disse para quem quiser ouvir: por ele, o Brasil vende tudo inclusive a Petrobras e o Banco do Brasil ,este último associado ao Banco da América. Falta coragem a seus assessores para assumirem todas as implicações ideológicas de seu chefe. Ou será que ainda há uma tênue tessitura de virtude cívica?


A questão ideológica se coloca ,sim. Concordo. Mas não como desculpa esfarrapada para permitir a subserviência diante dos poderosos e disfarça-la como correção de rumos de um governo essencialmente nacionalista. O problema é saber se ideologia é defender a letra e o espírito da Constituição ou chafurdar numa aventura de submissão neocolonial.