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Réquiem para uma diplomacia agonizante

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Um de meus leitores perguntou-me por que terminei meu artigo da semana passada “o catch 22 da diplomacia brasileira” mencionando que tinha saudades de Geisel e de Silveirinha. Acho que devo algumas explicações e as darei com prazer.

Com relação a Geisel, me limitarei a dizer que considero sua gestão a mais criativa e inovadora do período militar. Só estive com ele pessoalmente uma única vez, quando acompanhei um alto dignitário do mundo árabe a uma entrevista com o então presidente escolhido pelo alto comando militar. Faltava ainda a aprovação protocolar no Congresso.

A razão pela qual fui designado teria decorrido do próprio Geisel, que pediu ao Itamaraty um diplomata que pudesse servir-lhe de intérprete. Como trabalhava no escritório de representação no Rio de Janeiro, fui indicado para acompanhar o dignitário.

Releva lembrar que naqueles dias a questão do Petróleo e da OPEP andava no topo das preocupações brasileiras e pressionava politicamente o governo.

Geisel não nos fez esperar. O dignitário árabe, imaculadamente vestido em seu traje nacional, tratava-me com cortesia e -coisa de bom diplomata - desculpava-se por não falar o português.

Geisel me pareceu bem mais alto do que nas fotos e seu estrabismo no olhar era quase imperceptível. Não houve nenhuma conversa fiada. O convidado, que até então parecia-me suave, queixou-se amargamente da forma como seu governo estava sendo tratado por algumas altas autoridades brasileiras. Geisel ouviu sem interromper e sem me mandar traduzir o inglês elegante do visitante.

Ao tomar a palavra em resposta, Geisel virou-se para mim e de forma gentil, porém determinada, pediu-me traduzir tão literalmente quanto possível o que falaria. Assisti ali naquele fim de tarde carioca a uma bela lição de patriotismo ministrada por um estadista. Não poderei ir além disso por respeito aos interlocutores que em mim confiaram, mas apenas adianto que Geisel ali falou o que passou a fazer desde os primeiros dias de seu governo.

Silveirinha, embaixador Antonio Francisco Azeredo da Silveira, perdia para alguns outros nomes na bolsa de apostas sobre o futuro chanceler de Geisel. A cotação mudou rapidamente quando se soube que a entrevista dele com Geisel durou mais de horas, enquanto os demais candidatos não passavam de quarenta e cinco minutos.

Hoje se sabe que a conversa Geisel-Silveira foi o delineamento de uma diplomacia brasileira finalmente liberta das polaridades da guerra fria e voltada para a ocupação dos espaços geopolíticos que nossas aspirações nacionais exigiam.

Ao contrário da política externa de Castelo, que se fixou num alinhamento automático com os Estados Unidos, rapidamente transformado num ônus de nos vermos co-partícipes de uma força intervencionista em São Domingos e de quase mandarmos tropas para o Vietnam, a política externa de Geisel- Silveira foi um dos períodos mais frutíferos do Itamaraty

Silveira não tinha nada de fleumático. Era um dínamo servido por uma inteligência excepcional e dotado de uma estranha capacidade de conhecer o caráter dos interlocutores rapidamente. Talvez, se eu fosse dado a arroubos literários,diria que Silveira era um personagem das tragédias de Shakespeare. Ou de Nelson Rodrigues. Homem, cuja vida familiar foi marcada por dolorosas travessias das quais Silveira ressurgiu sempre determinado e vencedor. O período de Silveira no Itamaraty coincidiu com o de três presidentes nos Estados Unidos da America: Nixon, Ford e Carter. Nos mandatos de Nixon e Ford, Silveira teve como contraparte americano Kissinger e nunca se mostrou temeroso ou deferente diante do Metternich do século 20.

Os Estados Unidos durante o período dificultou no que pode nossos projetos de desenvolvimento. Pressionou a Alemanha e acabou com o nosso acordo nuclear com aquele país. Retardou e quase fez soçobrar nossa política de apoio à independência de Angola e Moçambique. Inviabilizou o reaparelhamento de nossas forcas armadas.

No mesmo compasso, reordenamos nossa política com a Argentina e chegamos à conclusão do litígio sobre Itaipu,cuja ata final foi assinada por Guerreiro, já no governo Figueiredo.

Ao contrario de hoje, em que não se sabe para que rumos nos leva o governo, na gestão Geisel tínhamos um plano de desenvolvimento que, dentre outras metas, articulava politica externa e interna de forma harmônica. Não havia diplomata no Itamaraty que não soubesse porque defendia determinadas posições e combatia outras. E nos dava prazer repudiar antigas insinuações de que o Itamaraty faria o que o Departamento de Estado impusesse. Tínhamos um leão arguto e não apenas dóceis cisnes em nossos jardins.

A integração entre as Forcas Armadas e o Itamaraty era respeitosa e na maioria das vezes harmoniosa. Os militares compreendiam a importância de uma geopolítica que nos privilegiava em território, população e recursos naturais. O Estado era o indutor de um desenvolvimento econômico em que a empresa privada e a empresa publica não se estranhavam. O Brasil cresceu para dentro e para fora e se tornou a quinta economia do mundo.

Nossa diplomacia era ecumênica e não privilegiava ideologias. Nosso prestígio nas Nações Unidas consolidou-se, nossa capacidade de construir consensos reconhecida. Obviamente, os Estados Unidos da America era um interlocutor singular,mas nunca cogitamos de fazer dele um parceiro privilegiado. À medida que nossa economia crescia, nossos interesses econômicos internacionais nem sempre coincidiam. Aprendemos a conviver com nossas diferenças e reconhecíamos nossas mútuas convergências sem fazer delas vínculos de subordinação.

Ao fim do governo Geisel,imensamente prejudicado pelo aumento dos juros internacionais, o Brasil tinha outra dimensão no mundo. Esta política, com o decorrer dos anos consolidou-se nos governos subsequentes. Aqui e ali tivemos hesitações e recuos,mas nunca mais se falou em alinhamento automático com os Estados Unidos e assim estávamos até primeiro de janeiro de 2019, quando uma súbita e inesperada inflexão de nossa política externa literalmente chocou o mundo. E de lá para cá, nossa diplomacia sacudiu a naftalina de velhos fantasmas. Voltou-se a falar em guerra-fria, em salvação do Ocidente e nos curvamos respeitosamente ao novo bezerro de ouro. Até quando? Onde foi parar nosso orgulho com o país que nos serve de berço e tumba?

* Ex- embaixador do Brasil na Itália

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adhemar | artigo