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Uma nova divisão do mundo?

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A reunião do G20 em curso no Japão, no momento em que escrevo estas notas, me leva a certas perplexidades. Suponho, ou melhor, antevejo que nosso presidente informará que o Brasil chegou nela combalido e dela voltou revigorado. Chegou lá com uma suspeita de tráfico de droga por membro da Força Aérea Brasileira. O episódio, que nos envergonha a todos, foi tratado com certa leviandade nos primeiros contatos do governo com a imprensa, felizmente superada com os agradecimentos públicos do presidente às autoridades espanholas. O assunto não merece aprofundamentos políticos apressados e injustos. Principalmente nesta hora em que parte relevante de nosso judiciário se vê suspeita de comportamento anômalo em procedimentos judiciais de enorme repercussão no Brasil e no mundo. Suponho igualmente que o governo registrará como vitória diplomática de vulto a conclusão exitosa das negociações técnicas do acordo União Europeia-Mercosul, apresentado, talvez exageradamente em meu entender, como mais uma prova de confiança dos líderes internacionais na nova política externa brasileira. A conferir, quando tivermos diante de nós os textos negociados e suas repercussões para o crescimento econômico do Brasil. Deixemos o tema, por enquanto, em repouso.

O terceiro tópico que certamente merecerá registro positivo do governo será o encontro histórico entre Bolsonaro e Trump, às margens da cúpula. Ali vimos o primeiro mandatário do Brasil manifestar claramente seu apoio à política externa de Trump, à identidade de propósitos entre os dois países e o desejo do presidente brasileiro em ver seu colega reeleito nas próximas eleições americanas. A exemplo do que fez na Argentina, nosso presidente parece descrer de reviravoltas políticas que reconduzam o peronismo à Argentina e os Democratas ao poder nos Estados Unidos. Enfim, não serei eu quem duvidará da argúcia e tirocínios políticos de um presidente com quase trinta anos de vida parlamentar pregressa. Sou, porém, da escola de que cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

Até aqui, o leitor verá que falo de fatos. Passo ao pantanoso terreno das perplexidades. Passo perigoso e desaconselhável em diplomacia, mas a que me arrisco pelas implicações para o futuro de nosso país nas próximas décadas.

Começo pela resposta de Trump a nosso presidente. Vejo nela extrema simpatia por seu contraparte. Mas seria injusto comigo mesmo se não visse nas palavras de Trump muito daquilo que os próprios americanos chamam adequadamente de” patronizing” termo que em política se poderia traduzir como bajulação interesseira, quando não hipocrisia. Enfim, pode ser que a velhice me esteja transformando num pessimista inveterado e que Trump, generoso como sempre, apenas tenha falado com seu coração de irmão maior e de líder do mundo livre. Sei também que o trecho que descrevi acima é apenas parte do que terá sido uma conversa a portas fechadas de onde se transpirou, a acreditar nos jornais que a relatam, a concordância do Brasil em aprofundar sanções econômicas à Venezuela e iniciá-las contra Cuba, país com que mantemos plenas relações diplomáticas.

Minhas perplexidades se aprofundam quando tomo conhecimento de entrevista de Putin a órgão de imprensa do Reino Unido em que declara em alto e bom som que o liberalismo democrático estaria ultrapassado e que o mundo deveria abrir-se para formas mais autoritárias de governo em que, dentre outros pontos, a política de controle migratório deveria ser enrijecida. Isto numa semana em que os jornais do mundo publicaram a trágica fotografia de um pai e sua filha de dois anos afogados às margens secas do país que um dia orgulhou-se de abrir suas portas a todos os necessitados. Causou-me idêntica perplexidade, como ao jornalista britânico, o silêncio de Trump às declarações de Putin.

Releva ainda lembrar que Trump mostrou-se evasivo diante do questionamento feito a ele e a Putin pela imprensa americana sobre alegada influência de Putin nas eleições americanas. O assunto como se sabe é objeto de inquérito nos Estados Unidos e frequenta alternadamente as páginas políticas e policiais dos grandes jornais americanos. Nesse contexto - terceira perplexidade - cresce de importância o comentário de Trump a Putin de que na Rússia não haveria “fake news” como Trump alega ser o cardápio da imprensa americana. Trump não escondeu mais uma vez seu desprezo pela liberdade de imprensa nos Estados Unidos e seu assentimento a uma política desumana e de quase extermínio defendida por Putin contra as correntes migratórias.

No mesmo dia, o ex-presidente Jimmy Cárter manifestou-se claramente em simpósio no Cárter Center sobre a ilegalidade da eleição de Trump e a ilegitimidade de seu poder.

Minha última perplexidade é com a ausência de perplexidade no distinto público em geral com essas frases e esses propósitos que ofendem a ética e a democracia. Temo que o silêncio que paira sobre esses escárnios tenda a se tornar moeda corrente e pouco a pouco deslizemos suavemente, docemente e irresponsavelmente por uma nova geopolítica mundial em que o Brasil seja parte no fatiamento dos mercados no futuro próximo. Se isto vier a acontecer, a geração de nossos filhos ou de nossos netos talvez dignamente urine em nossas sepulturas.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])

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