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Uma sociedade sitiada

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Entramos num jogo perigoso que não tem nada de inocente. Provocados, de forma grosseira pelo ministro da Educação, e, com artifícios maquiavélicos de marionetes e ventríloquos, nem sempre transparentes mas nunca totalmente ocultos, milhões de brasileiros foram às ruas defender seus direitos num caso e reafirmar sua solidariedade ao mito em outro. O ardil surtiu efeito. Uma manifestação foi imediatamente classificada como controlada por minorias idiotas e outra como expressão da mais nobre democracia. Instala-se assim no país uma perigosa arena para a luta campal.

E continuamos a patinar no atraso sem vislumbrar qualquer perspectiva de retomada do crescimento econômico e da paz social.

Paralelamente, projeto de disseminação irresponsável de armas de fogo circula pelo Congresso sem perceber que a combinação de posse de armas e fratura social só nos poderá levar aos descaminhos da anarquia social, senão de tragédia maior.

É por aí que andamos: nesta corda bamba, nesta aventura criminosa, como se fôssemos uma sociedade de bárbaros. A pergunta que nos fazemos diariamente é direta como um tiro de fuzil. A quem interessa este processo acelerado de corrosão social e econômica em que nos vemos mergulhados ?

Certamente não aos que desejam a construção de um país identificado com aspirações de paz e solidariedade social que inscrevemos na Constituição de 1988,a mesma que nossos constituintes escreveram com a sabedoria dos que viveram o regime da chibata, da censura à imprensa, ao cerceamento do pensamento acadêmico.

A sociedade brasileira está - para ser gentil- à beira de um ataque de nervos. Sofremos de uma neurastenia patológica, em grande parte fruto febril de uma consciência cada vez mais clara de que nos defrontamos com nossas próprias virtudes e defeitos. Fomos nós, ou pelo menos parte decisiva de nós, que acreditamos na saída esperta do pulo do gato. Porque, convenhamos, sempre nos acreditamos manhosos e maliciosos, banhados naquele jeitinho matreiro com que na infância arrancávamos de nossas avós o último pé de moleque. E sempre vivemos assim. Espertamente. Iludidos de que Deus era brasileiro, mito fundador de nossa inércia e de nossa pachorra.

E agora pressentimos que nada mais será assim. E nos damos finalmente conta, como já nos havia insinuado o poeta maior, agora justamente premiado por Camões, que, talvez, não "vai passar”como uma escola de samba de tresloucados passistas.

E como passaria, se estamos nos transformando num campo de refugiados em nossas próprias fronteiras, onde os desempregados se contam aos milhões, os estudantes são escorraçados como párias e os professores como amestradores de orangotangos?

Como poderia passar, se temos um ministro da Economia monotemático e ilusionista que nos acena com um futuro providencial e ao mesmo tempo nos arranca as perspectivas da vida digna em que nos abriga a Constituição de 1988?

Pois, o que se está fazendo neste ano da graça de 2019, mas já advindo de anos passados recentes, é destruir a Constituição de 1988. Até me lembra Carlos Lacerda, quando na ditadura militar que ajudou criar em 1964, mas que dela se afastou, e sua frase imorredoura: “os militares não tem coragem de decepar a Constituição com a espada e a picotam com um cortador de unhas”. Hoje, estamos recauchutando a Constituição de 1988 e a ela deformando com o botox traiçoeiro do neoliberalismo neocolonial que nos pretende fazer sujeitos ocultos ou envergonhados. E nosso chanceler anda por aí a fazer papelões em companhia do misantropo Bolton, renegado até pelo grande Bufão. E nosso ministro da Educação se apropria do guarda-chuva de Gene Kelly e nos presenteia um ridículo sapateado de Nosferato, e sua gosma vampiresca do dedodurismo entre pais e professores.

Mas, o pior é que não estamos a perceber, como sociedade ingênua que somos, que a Cutelaria Guedes e Cia, está esquartejando a Constituição brasileira e dela retirando toda proteção social e todas as salvaguardas nela inseridas pelos constituintes que nunca deram a Guedes o menor direito de se auto-nomear revisor majestático da Carta.

O senhor Guedes deveria ser chamado à responsabilidade e justificar diante do Congresso como ousa, de forma solerte, desfigurar a Constituição brasileira. E deveria igualmente ser inquirido porque em seus manuais de teoria e culinária de Chicago não constam formas de nos tirar da crise econômica em que nos encontramos, quando ilustrados economistas, alguns deles prêmio Nobel em suas especialidades, vivem a insinuar saídas menos traumáticas para sociedades como a brasileira.

Lamentável que grande parte de nossos legisladores não tenha exigido maior respeito por nossa Constituição, pois o que se está fazendo é deixar a sociedade atônita com o futuro pantanoso que se abre diante dela. A Constituição é um todo harmônico em que se articulam capital, trabalho e justiça social. Privilegiar o capital em detrimento do trabalho leva inexoravelmente ao descaso social, como já vemos em nossos índices de desemprego e no aumento da pobreza. A reforma da Previdência não pode arrogar-se em solução sem vir acompanhada de uma reforma tributária menos recessiva. Não se trata de unificar taxas e impostos, mas de fazê-los mais equilibrados de tal forma que os pobres não financiem os ricos. Este é o ponto sobre o qual não se fala.

Nesta hora, o Congresso deve ter plena consciência de que representa uma sociedade dividida e o que se espera dele é que faça do juramento à Constituição seu único compromisso, e a preservação de seus princípios constituidores o caminho para retomada de nossa soberania como nação , de nossa liberdade como povo e de nossa solidariedade na construção comum de nosso destino. O Brasil, como se diria em Wall Street, é muito grande para quebrar. E até lá, na catedral do capitalismo, se aprendeu a dura lição que o mercado, deixado descontrolado por suas próprias regras, apenas transforma em pó os que acreditam em seus mitos.