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Uma nova função para os Correios - e sua rica rede logística

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Sobre a solução para os prejuízos dos correios americanos, Milton Friedman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1976, era da opinião de que não seria correto a privatização, pois pertenciam ao povo americano. Para ele, o melhor e mais justo seria transformar o departamento em uma empresa, abrir seu capital e entregar suas ações aos cidadãos que, afinal, vinham por anos, através do pagamento de impostos, financiando o crônico déficit da instituição.

Nem uma coisa, nem outra. E muito embora seja responsável por 47% do volume postal do mundo, o correio americano segue público e gerando déficits astronômicos – cerca de US 80 bilhões em 2018.

Lá e cá temos o mesmo dilema: o que fazer com uma obrigação do Estado, que hoje não consegue prestar serviços de qualidade e gera grandes prejuízos e como impedir que um serviço público se transforme em um monopólio privado?

Meu bisavô foi funcionário do antigo Correio Nacional e seu maior orgulho, contava minha avó, era ter entregue pessoalmente correspondências ao imperador Pedro II. Se daquela época aos dias atuais, em algum momento, os correios chegaram a ser fonte de receita, no mundo moderno e, em particular, depois de Bill Gates, foi inexoravelmente remetido à categoria de centro de custos.

Embora o artigo 21 da Constituição de 1988 tenha incluído o serviço postal entre as obrigações da União, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) não detém um monopólio constitucional sobre esse tipo de serviço — apenas tem o “privilégio” de executá-lo nos termos do artigo 9º da lei 6.538, de 1978.

Isso mesmo! A despeito do impacto que as novas tecnologias tiveram sobre sua principal fonte de recursos (ou seja, a entrega de correspondências e de encomendas), a legislação brasileira segue considerando um “privilégio” conferir à ECT a prerrogativa de receber, transportar e entregar cartas e cartões postais no território nacional. A empresa, na mesma linha, expede para o exterior aquilo que é conhecido como correspondência agrupada, além de fabricar e emitir selos e de explorar outras fórmulas de franqueamento postal.

Esse “privilégio” ainda é responsável por 55% das receitas da ECT. Com elas e com a renda de outras atividades lucrativas, alocadas num etéreo “banco postal”, seria possível bancar a tarifa social, obrigação do Estado derivada do texto constitucional.

Não é o que acontece. A ineficiência administrativa, a interferência política e os escândalos de corrupção fazem com que o Tesouro Nacional, com o dinheiro dos contribuintes, tenha que bancar o déficit da ECT e, de quebra, do fundo de previdência de seus funcionários. A primeira solução que ocorre a quem se depara com esse problema é passar a ECT adiante e livrar o contribuinte desse fardo.

Não são muitos os exemplos de privatização de correios no mundo, porém alguns muito exitosos, como o Alemão, privatizado em 1995, que acabou por comprar a DHL, dentre outras empresas, e transformar-se num dos maiores “couries” do mundo, presente em mais de 200 países.

O Estado alemão detém ainda 20% das ações do que é hoje a maior empresa de encomendas do globo. Também no Japão a privatização foi parcial, e lá a maioria das ações da nova empresa estão com o Tesouro Japonês.

Os ingleses, com o cuidado de sempre, iniciaram a privatização em 2003 que só foi finalizada em 2016. Já Portugal tomou a mesma medida em 2013. Ou seja, as modelagens são várias e, se for esse o caminho, basta escolher para o nosso caso alguma opção do cardápio.

É importante salientar que em todos os casos, a começar pelo exitoso processo alemão, algum privilégio foi mantido. Porém, voltemos ao dilema de Friedman aplicado à nossa jaboticaba. Privatizar os correios independentemente da roupagem, da mais criativa das modelagens, não deixaria de ser o cancelamento dos “privilégios” ou a permissão de que o particular possa disputar esse mercado com a ECT.

Do contrário, simplesmente vender a companhia dos correios seria transferir o privilégio do público ao privado. No pacote irá toda a rede logística criada por todos esses anos pela ECT e não nos esqueçamos financiada pelos impostos tomados da sociedade.

É certo que todos esses impostos investidos nos correios brasileiros deixaram como legado algo a mais do que simplesmente os escândalos e a ineficiência administrativa da ECT. Os correios construíram, em particular nos últimos 50 anos, uma rede nacional de logística e distribuição, talvez a mais capilarizada do país e que chega, bem ou mal, nos mais distantes rincões de nosso território.

Se bem administrada, ela pode ser responsável por uma série de serviços essenciais que hoje não são prestados ou, se são, têm sua eficiência comprometida. Por um lado, não há por que o Estado se ocupar da entrega rápida de mercadorias adquiridas pela internet ou com a devolução dos passaportes confiados aos consulados dos Estados Unidos para a emissão de vistas. Por outro lado, ele pode, por meio dessa rede, entregar os medicamentos que é obrigado a fornecer à população carente. Por que não preparar a rede logística existente para essa obrigação e utilizar os centros de custos já existente para remunerá-la?

Todo carteiro carrega um telefone celular ou um tablet dotado de inteligência artificial. Com o algoritmo certo e uma simples foto do destinatário, o Ministério da Saúde saberá se o medicamento foi entregue à pessoa certa. Com uma rede de logística robusta, o Brasil poderia comprar esses mesmos remédios diretamente dos laboratórios, eliminar os intermediários e, possivelmente, reduzir seus custos e desperdícios. Esse é só um dos exemplos. Bem utilizada, a rede existente pode fazer o rastreamento físico do pagamento de benefícios da previdência, reduzir o custo da emissão de documentos, agilizar os trâmites judiciais e contribuir para a redução da burocracia que, hoje, prejudica e irrita o cidadão.

Acho que a ocupação da rede é que está errada. Há um mundo de possibilidades para ocupar essa rede e nela podemos agrupar inúmeros centros de custo, intransferíveis a iniciativa privada e hoje espalhados pela máquina pública.

É preciso privatizar para reduzir o tamanho do Estado. Mas, no caso dos Correio, mais do que na maioria dos outros, é preciso respeitar o dinheiro que o contribuinte investiu ao longo da história para implantar uma rede que pode ser utilizada em seu favor.

*Especialista em Gestão de Infraestrutura da CS Consulting, ex-ministro da Infraestrutura no governo Collor.

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