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Obra privada e dinheiro público

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É fato conhecido que o Estado, que na segunda metade do Século 20 foi praticamente o único responsável pelos investimentos em infraestrutura no Brasil, está falido. Não há dinheiro para obras sem as quais a economia não avançará, como novos portos, estradas e ferrovias. A pergunta é: onde obter os recursos para transformar em realidade o sonho de fazer o país voltar a avançar? A resposta fácil é: se o Estado quebrou, a solução é privatizar e estimular os programas de concessões e de Parcerias Público-Privadas.

Na prática, porém, não é tão simples. Se o Estado não tem capital para investir, o mercado privado nem sempre dispõe dos recursos ou não necessariamente tem a intenção de substitui-lo. Isso vale para qualquer grande projeto, mas sobretudo para os chamados greenfield. Uma coisa é conceder uma estrada ou aeroporto que já existe. Outra, bem diferente, é tirar uma obra do zero e entregá-la pronta dali a algum tempo. Tomemos, entre eles, o bom exemplo da Ferrogrão, uma ferrovia que partiria das regiões produtoras de Sinop e de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso e, depois de mil quilômetros, chegaria ao porto de Miritituba, no Pará.

O projeto é tão ambicioso quanto necessário. Destina-se a criar um novo corredor de escoamento da safra e tem custo de obra estimado em R$ 7 bilhões. Com as desapropriações necessárias, sistemas, aparelhos de via, as locomotivas e os vagões, pode chegar a R$ 10 bilhões. O prazo para entrega seria de, no mínimo, cinco anos. Dificilmente uma empresa privada, brasileira ou internacional, mesmo que disponha de recursos próprios suficientes, estará disposta a bancar uma obra desse vulto. Significa que terá que investir capital durante toda a execução da obra, não tendo qualquer retorno até o início das operações. Mesmo que o final seja compensador, pela redução do custo de transporte da soja, poucos são os capitais privados decididos a enfrentar o risco. A prática normal no Brasil tem sido que o capital privado participe com 15% ou, no máximo, 30% do capital necessário. O restante é financiado e vira dívida.

Os bancos privados nacionais e mesmo os estrangeiros, dificilmente mostram-se dispostos a esse tipo de financiamento. Na história recente da infraestrutura brasileira, eles respondem por, no máximo, 5% dos financiamentos das obras e, na maioria das vezes, apenas repassam recursos do BNDES. Para conseguir dinheiro para esse tipo de obra, o empreendedor, ou seja, a empresa que ganhou a concessão, tem que oferecer garantias reais de que pagará o empréstimo — e os bancos nunca aceitam a própria obra como salvaguarda do financiamento.

Ora, se os cofres públicos estão secos, é preciso encontrar uma maneira de arranjar recursos de um Estado que não tem dinheiro. Nos últimos anos, o BNDES, que sempre foi o responsável por viabilizar as grandes obras brasileiras, foi considerado — e injustamente, ao que tudo indica — suspeito por ter feito empréstimos a empresas envolvidas em escândalos de corrupção. Por causa disso, a instituição praticamente fechou sua carteira para novos empreendimentos em infraestrutura e até deixou de cumprir obrigações já contratadas.

Não se está dizendo aqui que o banco não tenha que exigir lisura de seus clientes. Isso é necessário. O problema é que, ao negar fôlego para projetos em andamento, o banco mata por asfixia suas galinhas dos ovos de ouro. Protege o dinheiro que ainda está em seus cofres, mas praticamente abre mão de receber de volta os recursos que já liberou para o projeto.

Parece óbvio que, sem um banco de fomento disposto a cumprir o seu papel, falar em concessões e em PPP se torna um discurso vazio. Da mesma forma, voltar a financiar o setor público, em particular os estados e os municípios, para dar cabo de obras necessárias e paralisadas é, no mínimo, incentivar a improdutividade e conceder prazos infindáveis para a efetivação de soluções.

Não é que o gestor privado seja, por definição, mais eficiente e mais honesto do que o gestor público. O importante aqui é deixar claro que o atual sistema de contratação para obras públicas no Brasil, mesmo cumprindo todas as exigências de prazo e de especificação técnica, nunca permitirá que uma obra tocada pelo agente público tenha o mesmo desempenho de uma obra privada. Isso é ponto pacífico.

Um exemplo disso é o da Linha 6, Laranja, do metrô de São Paulo. Assim que ganhou a concessão para executá-la e, mais tarde, explorá-la, o consórcio vencedor foi ao mercado e escolheu entre os melhores fornecedores, os responsáveis pela definição do projeto executivo. Pôde contratar mais de vinte empresas entre nacionais e estrangeiras, que mobilizaram quase mil técnicos para projetar cada metro de túnel e cada estação, num trabalho de alta complexidade, que ficou pronto em menos de dois anos.

Se a construção não tivesse sido descontinuada justamente pela paralisia do financiamento, seguramente a linha já estaria pronta. No caso da linha 5, Lilás, que está sob responsabilidade da Companhia do Metrô, as obras se arrastam há mais de uma década e até hoje não ficaram totalmente prontas. Como é praxe nos contratos públicos, houve, além de atraso na execução orçamentária, aquilo que normalmente dificulta as obras de infraestrutura no Brasil. Qualquer edital por aqui está sujeito a uma série de amarras, contestações, objeções e ações judiciais nem sempre razoáveis, que sempre dificultam seu andamento. No caso de uma obra privada, a batalha judicial em cada etapa do projeto simplesmente não acontece.

Nas mãos da iniciativa privada, pode ser que o governador João Doria consiga inaugurar algumas estações da Linha 6 até o final do seu mandato. Nas mãos do próprio Metrô, talvez nem seu sucessor faça isso.

Em resumo, para a construção dos grandes eixos da infraestrutura nacional, é imprescindível a capacidade de articulação e investimento do Estado, a operação do BNDES utilizando fontes de recursos adicionais hoje dispersas no sistema e a presença e agilidade das empresas privadas que assumirão o risco da operação. Do contrário, tudo seguirá parado como está há algum tempo. 

*João Santana é advogado e especialista em Gestão de Projetos de Infraestrutura. Foi Ministro da Infraestrutura no Governo Collor.

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