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A síndrome da sociedade brasileira

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Quando um ministro da Educação anuncia, com traços de sadismo, contingenciamentos na educação pública, é lícito perguntar se estamos diante de uma forma grave de patologia social? Primeiro, três universidades seriam punidas por balbúrdia. Em seguida, todas as universidades públicas teriam cortes de 30% em seus orçamentos. No meio tempo, o ministro vituperou contra os cursos de Ciências Humanas, em especial os de Sociologia e Filosofia que em nada parecem ajudar na formação do jovem universitário. Finalmente, pressionado por legítimas críticas, modera o discurso satânico e pretende esclarecer que os cortes serão apenas contingenciamentos impostos pelo ministério da Economia.

Em poucos dias, o ministro da Educação colocou alguns milhares de lares de universitários em crise e desesperança. Como se já não bastassem as angústias trazidas pelos desencontros sobre o novo formato e conteúdo do ENEM, onde o próprio presidente da República se erige em fiscal último da pertinência das questões; como se já não bastassem as reiteradas desinformações sobre o financiamento público de faculdades particulares; como se já não bastassem as críticas exageradas ao nível do ensino público e dos professores brasileiros, o ministro da Educação acrescenta ao cardápio de preocupações dos chefes de família a sorte madrasta de seus filhos em idade escolar.

Imaginem os diálogos entre pais e filhos nesses dias de indefinições, quando ambos sabem que a opção de uma formação universitária privada estaria fora de qualquer consideração realista. Imaginem a angústia de milhões de jovens que veem desenhar diante de si a imagem de um futuro sem horizontes e com empregos precários e mal pagos. Imaginem mães fazendo contas patéticas de cortes de despesas na vã expectativa de levar filhas ao sonho de se graduarem médicas. Imaginem as noites insones de todos. Imaginem o sentimento depreciativo de se sentir depreciado, marginalizado, abandonado. Imaginem, imaginem.

Quando os jornais imprimem em suas primeiras páginas foto de deputados e altas autoridades apoiando com gestos impudicos e aplausos sem vergonha a assinatura de um decreto presidencial que torna possível o porte de armas de fogo por milhões de brasileiros, é lícito dizer que estamos diante de uma sociedade tomada de uma grave patologia social? Será delírio imaginar que brasileiros matarão brasileiros em praças públicas e que muitos mais inocentes serão ceifados por balas perdidas nas ruas das cidades?

Quando o ministro da Justiça e da Segurança Pública aplaude a assinatura desse decreto e o considera apenas o pagamento de um compromisso eleitoral, é lícito pensar que a sociedade brasileira sofre de uma patologia social grave? Seria delírio imaginar que o ministro da Justiça deveria ser o primeiro a modificar o projeto de lei que ele próprio enviou ao Congresso, com atenuantes nos casos de crimes decorrentes de estados incontroláveis de emoção? Por que não toma a iniciativa de tornar crime hediondo o faroeste urbano? Será que ele tomará esta providência ou imaginará que a sociedade brasileira está tão gravemente doente que sequer disso se ocupará? Imagine que tudo isso é apenas um pesadelo.

Quando o ministro da Economia insiste pela enésima vez que só a reforma da Previdência Social poderá salvar o país da bancarrota e economistas outros argumentam que há caminhos menos sofridos, a sociedade está gravemente doente quando hesita em declarar sua mais completa rejeição a uma proposta chamada de “suicida”, por quem sempre mostrou bom senso e solidez acadêmica? Será que nosso ilustrado ministro da Economia não sabe que nos conduz ao caminho da regressão?

Será que não sabe que economistas agraciados com o Prêmio Nobel, como Krugman e Stiglitz desnudam diariamente as falácias de um mercado supostamente auto regulado? Será que Sua Excelência, o professor e gênio das finanças Paulo Guedes, desconhece que sua universidade de Chicago e seu mestre Milton Friedman são unanimemente considerados nos meios acadêmicos como frutos murchos de um capitalismo predador?

Será que Paulo Guedes não reconhece que faz terrorismo cultural quando ameaça deputados e senadores pelo descalabro econômico que vê no horizonte se não nos curvarmos a seus vaticínios e a suas prescrições? Será que Paulo Guedes não poderia sugerir a cobrança de imposto de renda dos lucros de dividendos? Será que não poderia parar de nos iludir que a aprovação da reforma previdenciária é o abra-te-sésamo do investimento externo?

A quem Paulo Guedes imagina que fala? A uma sociedade de mendigos e famélicos disposta a vender a própria alma por um prato de lentilhas transgênicas? Que patologia da insensatez imagina ele que acomete a sociedade brasileira?

Quando o ministro da Economia refuta quaisquer medidas alternativas para combater o desemprego e promover políticas de desenvolvimento antes de o Congresso aprovar a reforma previdenciária, estará a sociedade brasileira tomada de grave patologia social ao ver que os juros bancários são escorchantes e impedem a atividade da pequena empresa? Estará a sociedade brasileira gravemente doente por aceitar que os juros cobrados pelos cartões de crédito são os mais leoninos do mundo e, assim mesmo, achar que não há nada a fazer?

Estará a sociedade brasileira conformada com a iminente venda de suas empresas estatais, a demissão de seus funcionários e a perda de sua autonomia no controle de seu petróleo e de suas riquezas minerais?

Estará a sociedade brasileira orgulhosa e tranquila com a política externa, que transformou o Itamaraty num palanque de estultices a provocar na cena internacional risos e galhofas? Estarão nossos parceiros históricos em condições de compreender que mergulhamos na filosofia de um visconde de Sabugosa renascido em Virgínia e que fez do papel higiênico o papiro da nova diplomacia seletiva, discriminatória, pretensiosa e imensamente boboca?

E, finalmente, estará a sociedade brasileira, quando sai às ruas, de forma pacífica e em defesa de seus direitos, demonstrando sua insanidade e revelando sua incapacidade de pensar por sua própria cabeça ou - como acusam altas autoridades - desafiando o poder constituído como massa de manobra de um bando de anarquistas, arruaceiros que não conseguem atinar com a sabedoria de nossos salvadores, sempre diligente e construtiva?

Seremos, nós brasileiros, um povo inoculado com as taras de nossa miscigenação moleque e histórica, incapazes de compreender que o que julgamos o caminho da servidão nada mais é do que nossa redenção abençoada pelos salvadores que levamos ao altar? Será que somos inocentes úteis nessas artimanhas? Ou será que simplesmente temos medo de andar com nossos próprios pés?

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])

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artigo | sociedade