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A mensagem de Notre-Dame

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Há duas maneiras de ver o incêndio da Catedral de Notre-Dame, em Paris. Uma, com olhar tosco e pseudocientífico.”Certamente uma faísca provocou o incêndio". Outra, o olhar do mistério. “Alguma coisa nos dizem os deuses”. Uma Catedral não navega oito séculos para virar um monte de cinzas a ser tragado pelo Sena. Há algo de muito sombrio no ar para fazer ruir, numa outonal tarde parisiense, a flecha maior da devoção à mãe de Cristo, aquela por meio de quem chegamos aos ouvidos do Pai.

Foi um bater de portas diante de multidões que, sem cerimônia, invadem a Catedral em busca da contemplação das belas volutas góticas, dos sons angelicais de Bach, de Handel ou de Mozart. Uma invasão cotidiana da Catedral em busca do prazer lúdico de nossos mais sensíveis sentidos humanos. E adentra-se a Catedral como quem adentra o Blue Note, la Scala de Milano ou o Sambódromo.

No mundo espetáculo,nossa sensibilidade tem a profundidade rala das trocas mercantis. E comparamos, com a sabedoria do google, a Gioconda com a Pietá. Tudo em nós tem a marca da volúpia do mercado, o passo insano da ambição, o estigma da concorrência predatória. As Igrejas se transformam em ante-salas de bazares onde se aspergem águas e se beijam crucifixos, bentos ambos.

Não é por outra razão que, em Roma, Francisco acusa a corte de distanciar-se da humildade, primeira graça dos escolhidos e dos guias, condena as indumentárias principescas e excomunga os não poucos que se deixam levar pela lascívia secreta e sacrílega. Por muito menos,o Filho, em Jerusalém, expulsou do templo os vendilhões.

Agora, em Paris, a Madona fecha as portas de sua casa, farta de tanta hipocrisia, de tanta alienação, de tantos desvios do caminho traçado pelo fruto de seu ventre. Cansada de ver, por sábados infindáveis, as ensangüentadas escaramuças urbanas a fazer de Paris uma Plaza de Toros. Angustiada por pressentir que se aglutinam, ainda por uma vez, as forças do Anti-Cristo e por assistir multidões, na Europa, nas Américas, famélicas, famintas, baterem portas de indiferença, de desprezo e de repulsa. Que na África ainda se mata em rixas tribais, se estrupam e seviciam crianças. E que circula pelos mundos e submundos a praga de uma doutrinação impérvia aos mais comezinhos princípios do que um dia chamamos Iluminismo. E, em seu lugar, levantar-se a nova peste do século XXI, a desigualdade social como proposta de vida, em nome de um progresso disfuncional em que milhões de seres humanos não tem acesso à água potável, ao saneamento básico, à escolaridade fundamental e proteção à saúde.

Enquanto uma minoria de 1% aprovisiona uma indecente riqueza num sistema econômico vicinal ao escravismo mais abjeto. Uma praga social pior que a peste bubônica pois nela os ratos nos transmitiam os micróbios da febre e da morte. Agora, são homens a dilacerar homens, não com a espada e a lança do medievo, mas com a corrosão do direito ao trabalho justamente remunerado, passo primeiro na perda da dignidade humana, na fermentação do ódio e na chaga da exclusão.

E tudo isso ao embalo do mantra “não há alternativa”, dístico diabólico de uma pseudo teoria econômica, nascida da mais abjeta visão do processo civilizatório. E assim, neste começo de século, põe-se a ferver o caldeirão do caos social, num prenúncio de que talvez este planeta se torne num futuro incerto uma simples poeira do espaço cósmico.

A tudo isto Notre Dame assiste e nos dá um toque de leve,como é de seu feitio, em nossas consciências. O fechamento das portas de sua catedral levará certamente massas humanas notar que o trabalho que se há a fazer não é divino, mas abençoado. A real implantação do Estado Democrático de Direito.

A reabertura da Catedral se dará num prazo de dez anos, talvez vinte. Minha geração será poupada do desprazer de ler num mármore bem trabalhado a lista dos beneméritos que contribuíram com seu "argent de poche“ para a reconstrução. E deles, beneméritos, se dirá que foram homens justos e honrados, piedosos templários dos tempos que correm.

Mas, durante os anos em que a casa de Maria estiver fechada para os bisbilhoteiros passantes ou diletantes delirantes, talvez alguém se pergunte porque Maria terá escolhido a semana santa do ano da graça de 2019 para demonstrar sua divina insatisfação com um mundo que se inebriou mais uma vez com o bezerro de ouro. E - quem sabe - a esse ilustre e anônimo curioso se lhe recorde a frase de Francisco, em maio de 2013. "Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão na idolatria do dinheiro e na ditadura de uma economia realmente sem fisionomia nem finalidade humanas”.