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Mais Oswald, menos Ernesto. Mais Brasil, menos Pátria

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Em março de 1924 Oswald de Andrade afirma no manifesto Poesia Pau-Brasil que o “carnaval do Rio de Janeiro é o acontecimento religioso da raça”. De fato o carnaval é a manifestação mais genuína daquilo que podemos chamar de brasilidade.

Mas o que é brasilidade? Essa busca de entendimento permeia nossa história desde a origem (nos referimos à lusitana) quando se buscou no índio (mediado por uma visão externa à sua cosmologia) uma representação primeva dessa ontologia brasileira. Erramos feio. Marcados por um Romantismo de importação, buscamos mitos fundacionais de uma pátria numa história nascida da invasão.

Oswald refletia sobre como enxergávamos nossa constituição de “povo”. Se opondo a uma cultura voltada para Europa, marcada pelo “lado doutor, o lado das citações, o lado dos autores conhecidos” que copiava tudo e nada produzia de genuíno, estrangeiros numa terra nativa, Oswald propunha o radicalismo da Antropofagia transformativa. Suas metáforas catalisadoras incitavam uma revolução do pensamento brasileiro, pois foi o contato com a terra brasilis que permitiu uma reviravolta no pensamento humanístico europeu, “sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos dos homens”.

As ideias são sintéticas, mas densas, pois reúnem uma história oculta da dizimação indígena e da escravidão africana na formação daquilo que se constituiu por pátria. Mas a brasilidade, em sua profundidade, era negada, saneada, floreada por apetrechos sociais e retóricos. Era preciso desnudar-se de toda cultura imposta, pois “o espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo”.

Para Oswald, ser brasileiro era reconhecer que, como cantou o samba-enredo da Mangueira, “desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento; tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”. Seu nacionalismo era crítico. Numa espécie de apoteose oswaldiana, a escola de samba desfilou reflexões que estavam ganhando espaço no cenário intelectual e popular acerca de um revisionismo histórico urgente. Mas o protagonismo e a ousadia da Mangueira de trazer para a avenida os heróis esquecidos das páginas oficiais ainda denota nossa deficiência crônica para com a memória, além de exibir as feridas narcísicas dos lugares de poder que se digladiam para mostrar suas facetas.

Essa fratura histórica fica evidente quando tais acontecimentos nos relembram o discurso de posse do chanceler Ernesto Araújo. Numa exposição de erudição sedutora, se ocultavam ideias genéricas, quando não absolutistas. Ali estavam uma entendimento de Brasil atrelado a uma concepção unilateral da história. Enquanto a Mangueira gritava a plenos pulmões que era hora de “contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar”, dando protagonismo aos “heróis de barracões, dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões”, nosso chanceler louvava o Itamaraty “não como repartição pública, mas como templo” onde desfilam heróis da história nacional, notadamente os detentores do poder de Casaca verde montado em cavalos a empunhar fálicas espadas, deturpando o conceito republicano.

Se Oswald nos brinda com a reflexão do “Tupy or not tupy that is the question”, num belo ensaio do que seria sua antropofagia cultural, o chanceler nos acomete com o louvor da Ave Maria em tupi; no entanto, o seu elogio do tupi não vem pela valorização de elementos autóctones, mas pela apropriação da figura notadamente controversa de Anchieta, que declarava que a conversão indígena se não ocorresse de forma pacífica pela aceitação resoluta, deveria se dar pelo uso da espada.

Atualizando um ufanismo messiânico, Ernesto Araújo ressuscita de sua tumular lápide um sentimento que já legou ao mundo moderno graves consequências nefastas. Um patriotismo do “espírito” que busca seu fundamento em raízes pretéritas, e mesmo externas, mas não deixa espaço para uma diversidade e não corresponde a uma realidade traumática de construção da história nacional.

Entender a brasilidade é um desafio que se apresenta na contemporaneidade. No entanto, como em outros momentos, o seu reconhecimento e valor passam por caminhos antagônicos. Pode-se recuperar o caminho trilhado há muito, mas que renega outras possibilidades, ou ousar novas veredas, tirando “a poeira dos porões de mulheres, tamoios e mulatos”. Ou aceitamos que a “liberdade não veio do céu, nem das mãos de Isabel”, ou talvez concluamos como Euclides da Cunha que “iludidos por uma civilização de empréstimos, tornamos fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências de nossa própria nacionalidade”.

Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e doutorando em literatura (PUC-RJ)

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artigo | jb