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A banalização da vida e a sociedade do espetáculo

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Em semana marcada por atos apavorantes em partes tão distantes do globo, como nas pacatas cidades de Suzano e Christchurch, a violência dilacerante que uniu em laços fúnebres Brasil e Nova Zelândia, nos faz perguntar onde iremos chegar neste percurso repleto de sangue, intolerância, distorções profundas, e que desconhece fronteiras. Numa manhã que parecia seguir como tantas outras, dois ex-alunos invadem a Escola Estadual Raul Brasil, em São Paulo, atirando na direção de crianças, adolescentes e adultos, tão surpresos quanto indefesos. Revólver, machado, arco e flecha esvaindo virulência por todos os lados. Dez pessoas, dentre eles os assassinos, morreram em cenário e ocasião improváveis.

Dias depois, do outro lado do mundo, em nome de supremacia imaginária, purismo idealizado e em defesa do indefensável, um homem ceifou dezenas de vítimas, quando estas se dedicavam à fé e buscavam a paz em seus templos de oração. Não bastasse tamanha crueldade, impactou o mundo ao planejar e executar a transmissão da barbárie ao vivo pelo Facebook. O que leva uma pessoa a espetacularizar o horror? No caso brasileiro, as imagens foram gravadas por câmeras locais, mas não há como descartar a relação, ao menos imagética, com elementos visuais dos videogames de temas bélicos. Ou seja, os dois eventos se ligam, em meio às múltiplas conexões e complexas razões, à cultura da imagem.

Há mais de 50 anos o filósofo e cineasta francês Guy Debord publicava A sociedade do espetáculo. Foi em 1967, quando causou enorme impacto nos ambientes acadêmicos. O filme, baseado no livro, foi produzido em 1973. Apesar do tempo que separa as obras dos acontecimentos de hoje, a reflexão do teórico se atualiza em nossa sociedade e nos alimenta na empreitada de tentar compreender quais dinâmicas sociais se imbricam aos fatos ocorridos. O autor explora a ideia de que vivemos em um mundo mediado por imagens que influenciam fortemente nossos desejos e convicções. O que ele definiu como espetáculo se constitui não apenas em mera coleção destas imagens, mas nas relações que se estabelecem mediadas por elas, como, por exemplo, a publicidade, que desperta desejos e estimula determinados convívios interpessoais e de mercado.

Na essência do pensamento de Debord encontra-se o diálogo com o contemporâneo. Trata-se da crítica à estrutura social que prioriza a imagem em lugar do realismo e elege a ilusão em detrimento da realidade.

O pensamento do filósofo se potencializa se consideramos a ampliação técnica dos recursos e produtos de imagem característicos dos dias atuais. Mais que nunca, vivemos uma época na qual parecer é mais importante que ser, e, paralelamente, dispomos de diversos mecanismos de propagar tal deturpação. Não basta ser feliz é preciso exibir a suposta felicidade em cenas banais de alegria duvidosa. Hoje, diante de um acidente ou alguém em perigo, prioriza-se registrar a passagem, em vez de prestar o devido socorro. Nos tornamos espectadores da vida em lugar de sermos autores. E é no contexto em que a aparência é soberana, que ecoa o questionamento: O que tem movido pessoas a assumirem posturas tão brutais e a reproduzi-las sem qualquer critério, ética, responsabilidade ou mesmo humanidade?

Certamente não há respostas simples para questões complexas. Tampouco é o caso de ignorar que a explicação para ações bárbaras envolve, necessariamente, múltiplos fatores. Contudo, não podemos ignorar que quando aparência e essência se amalgamam, e os limites entre ilusão e existência real desbotam, a vida é banalizada. E nesse espetáculo execrável, todas as luzes se apagam. Na escuridão, ao cair o pano, descortinam-se a cultura de ódio, apologia às armas, incompreensão e intolerância. Aos que assistiram, incrédulos, os massacres se repetirem nas imagens captadas pelas câmeras e impressas nas memórias, a dor é profunda e desmedida. Visceral. Sem edições. E na plateia que cabem todos que se solidarizam com a tragédia do outro, pais, amigos, colegas de trabalho e amores daqueles que se desvaneceram na loucura alheia, silêncio sepulcral... não há o que aplaudir... Fim.

***Thelma Lopes - Mestre em Teatro e doutora em Ciências