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A festa acabou. E agora, Jair?

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Não é preciso ter mais de 30 anos, estar no segundo ou terceiro casamento, ter lido Marx, Freud ou Gramsci, ter ouvido falar em Sartre e Simone. Não é preciso ser politizado, de esquerda ou de direita, ter lido o poeta Drummond, cujo poema “José” inspirou este titulo, para sentir que há no ar um clima de instabilidade emocional e politica, de fim de festa, algo que projeta sombras e assusta, deixando as pessoas estressadas. O humor torna-se agressivo, fica mais difícil dormir à noite. A qualquer hora da madrugada podem bater em sua porta, e não será o guarda da esquina. Quem viveu 1964/68 sabe disto. Sentimos todos que a democracia brasileira corre riscos, com menos de três meses depois de instalado o novo e inqualificável regime.

Com um ponto de interrogação no final, Democracia em risco?, este é o título de um livro que a Companhia das Letras acaba de colocar nas livrarias. São vários os autores, sociólogos, economistas, filósofos, cientistas políticos, de corte liberal e de centro esquerda. A perplexidade e as assombrações dominam os ensaios. Para Ruy Fausto, “Bolsonaro é um fundamentalista cristão com um projeto autocrático sui generis, que fez um acordo com os neoliberais”. A economista Monica de Bolle questiona a falta de clareza da política econômica de Paulo Guedes e adverte para o risco de a agenda econômica virar moeda de troca com a bancada evangélica para aprovação de leis que afetem direitos e liberdades das minorias. E projetos ultraconservadores nos costumes.

O país elegeu um presidente que não pode mais falar por si mesmo, controlado que está pelos militares estrategicamente situados no Palácio do Planalto, encarregados de copidescar e corrigir o que ele fala. Atos falhos são corriqueiros. Numa deles, disse que a democracia e a liberdade são concessões dos militares. O principal destes ventríloquos é o general Humberto Mourão, nada menos que o seu vice, que aspira a presidência. Em uma semana, o capitão Bolsonaro estarreceu o país e o mundo com uma sucessão de ações vis, incongruentes, abjetas e/ou obscenas.

Postou um vídeo em sua conta de Twitter em que um homem toca o ânus e depois urina sobre o outro, num bloco de rua em São Paulo. Algo desprezível, com evidente falta de compostura. Desautorizou seu ministro outrora todo poderoso Sergio Moro, com uma ordem para demitir a respeitada pesquisadora Ilona Szabó, indicada suplente do Conselho Nacional de Política Criminal. Aplaudiu seu ministro da Educação determinar a filmagem de crianças perfiladas cantando o hino nacional nas escolas. Pressionado pelo filho Carlos, demitiu seu secretário e ministro Gustavo Bebiano, envolvido num escândalo de candidaturas laranjas. Fez do celular uma arma de ódio, compartilhando noticias falsas nas redes sociais, a penúltima delas uma acusação forjada contra a repórter Constança Resende, do Estadão. Liberdade de imprensa o incomoda.

O país passou a conviver com uma conjuntura insólita, de imprevisível desfecho. O presidente tornou-se refém de um autoproclamado filósofo de ultradireita que mora em Richmond, Estados Unidos. Com a arrogância de quem é mais do que um guru ideológico, Olavo de Carvalho faz chantagens, nomeia ministros, demite assessores, define rumos na chancelaria e na da Educação, numa situação institucionalmente inusitada.

Que poderá durar os quatro anos do mandato presidencial ou ser repentinamente rompida por um acidente, tal a fragilidade e a desarticulação do sistema. A palavra impeachment, que durante meses atormentou a ex-presidente Dilma, voltou a circular com desembaraço pela mídia e pelas redes. O insuspeitado jurista Miguel Reale Júnior deu entrevista falando que a configuração de quebra de decoro pode justificar a abertura de processo de impeachment Em qualquer situação, o que a nação exige é o respeito às normas da Constituição.

Neste momento de angústia e assombrações, que fique registrado para os cadernos do futuro o grito de advertência, emitido com raiva e lucidez, pela Estação Primeira de Mangueira, grande campeã do carnaval de 2019 do Rio. Com um desfile que trouxe para a Marquês de Sapucaí os subversivos, os explorados, os negros, os índios, personagens invisíveis nos livros oficiais, a Mangueira deu voz a todos que não saem no retrato. Um momento deslumbrante de alegria e explosão, contra a usurpação e o deboche.

O carnavalesco Leandro Vieira fez História com seu carnaval em que resgatou o sentimento e a cultura popular. No desfile, pontificou a efígie da vereadora Marielle Franco, que teve seu rosto de princesa negra emoldurado numa enorme bandeira. Marielle torou-se um ícone internacional das lutas das mulheres. A prisão tardia, à véspera do primeiro aniversário de seu assassinato, dia 14, de dois suspeitos que participaram de sua execução é um primeiro passo. O país agora quer saber os nomes dos mandantes de um dos crimes políticos mais inomináveis de sua história.

“E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu...”

*Jornalista e escritor

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artigo | jb