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'Vamo' quebrar tudo?

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Folheando uma antiga revista em quadrinhos lembrei-me de um cartunista e diagramador dos bons, o Jorge San (com ene mesmo), com quem convivi bastante e trabalhei algum tempo. Isso quando ele conseguia, porque na maioria das vezes estava pra lá de Marrakesh. Ele era assim mesmo, uma alma tresloucada que não se enquadrava na rigidez da moldura social. Até que se esforçava, mas endoidava sempre.

Quando forcei a barra e botei o San num trabalho com horário a ser cumprido e tudo o mais, onde ele fazia comigo a arte final de um house-organ na assessoria de comunicação de uma multinacional da área farmacêutica, era comum ele irromper na minha sala no final da tarde, cabelo desgrenhado, e me fazer o inusitado convite enquanto simulava um Jimi Hendrix tocando guitarra: - Brother, "vamo" sair pra tomar uns birinaites e quebrar tudo?! Saímos muitas vezes, enchemos a cara e nunca quebramos nada, literalmente.

Antes que me censurem ou me taquem um "teje preso" por incitação à desordem pública, pois de fato parece haver algo no ar além dos aviões de carreira, eu explico: aquele convite era na verdade um gesto libertário mal camuflado do velho San, um dane-se geral pacifista, uma ode à alegre loucura dos nossos 20 anos, que já nem tínhamos mais. Dá para traduzir por cair fora. Buscar um mundo melhor. Por make love, bicho.

Outro "quebrar tudo", porém, num outro contexto, paira no ar sem a verve do San, ameaçador, e por incrível que pareça, incitado pela omissão e/ou irresponsabilidade (ou pela desumanidade mesmo) do próprio Estado.

Em sua coluna no dia 22/01/19 no JB, Chico Alencar tece críticas à liberação da posse de armas no país. Duas citações, que são complementares, estão lá no seu artigo: 1 - o "apequenamento do monopólio da força pelo Estado democrático de direito"; 2 - "Exacerbado no neoliberalismo do cada um por si`, o Estado vai se desobrigando da necessária tarefa de garantir segurança pública para todos, entregando a cada pessoa sua autodefesa".

Ao mesmo tempo, o FMI pondera em Davos sobre a insatisfação social espalhada no mundo, alertando os chefes de governo sobre possível "escalada de riscos políticos" (leia-se rebeliões) e Winnie Byanyima, da ONG Oxfam Internacional, avisa que "o abismo que aumenta entre ricos e pobres penaliza a luta contra a pobreza, prejudica a economia e alimenta a raiva no mundo", onde 26 bilionários têm mais dinheiro que as 3,8 bilhões de pessoas mais pobres do planeta. Paradoxalmente, é nesse contexto de exclusão e cólera que o presidente Jair Bolsonaro prioriza a liberação da posse de armas no país, onde os cinco homens mais ricos têm riqueza equivalente à metade da população mais pobre, o que equivale a cerca de 100 milhões de brasileiros.

Como escreveu Chico Alencar, o que começa a ser implantado no Brasil é o neoliberalismo do cada um por si, no qual, deduzo eu, o estado do bem-estar social vai sendo desmantelado, distanciando-se da sociedade e colocando-se exclusivamente a serviço do dinheiro.

Estaremos então nos aproximando do "estado de natureza" de Thomas Hobbes, no qual o homem se preocupa apenas em satisfazer suas necessidades e defender seus direitos naturais, que são a vida e a liberdade? "Tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção", escreveu Hobbes no "Leviatã". Para o filósofo, a natureza humana é egoísta e o homem quer satisfazer seus desejos a qualquer custo, mesmo que aquilo que queira pertença a outro homem.

A pergunta então a ser feita e devidamente respondida não é que tamanho o estado deveria ter, mas qual seria o seu papel. No Brasil atual, parece que é o de intermediador de negócios para encher ainda mais os bolsos dos bilionários, de lá e de cá, alimentando a raiva no mundo.

A crise envolvendo o senador eleito Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor Fabrício Queiroz joga mais lenha na fogueira. À boca pequena, comenta-se que não vai dar em nada, apesar das evidências. Das duas uma: ou apura-se com imparcialidade, celeridade e extrema clareza, mesmo que em seus desdobramentos o governo do presidente Bolsonaro seja atingido, ou abafa-se o caso. Aí teríamos um quadro agravado de descrença no Judiciário, na sustentabilidade da democracia e na prevalência do Estado de direito, causando instabilidade, intolerância, aumentando a raiva no mundo.

Voltando ao Jorge San, que bacana se ele entrasse intempestivamente agora pela minha porta e me convidasse para tomar uns birinaites e "quebrar tudo", antes que isso seja realmente levado a cabo, ipsis litteris.

A coisa tá preta, brother.

* Jornalista, ex-secretário de

Cultura e Turismo de Cataguases