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O anti-intelectualismo contra a democracia

Caio Paiva -
Ilustração de segunda-feira, 11 de março de 2019
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Intelectual é todo indivíduo que realiza alguma atividade mental nos campos da filosofia, da ciência, da arte, da literatura, da religião, expressando-se em nome de uma autoridade legítima assegurada pelas tradições ou pelos méritos. Toda sociedade produz seus intelectuais para pensar as técnicas, as regras, os valores, as instituições e as utopias. Em muitas comunidades tradicionais os Idosos eram reconhecidos como os sábios; em outras, os sacerdotes, os pajés, os artistas e os filósofos.

Há na atividade intelectual legítima uma missão de ajudar a coletividade a se elucidar, a refletir e compartilhar memórias, fazeres do cotidiano e sonhos. O intelectual se legitima pelo seu talento e vocação para o pensar, mas por treinamentos intensos da mente e da escrita. Há neste fazer uma certa ética da generosidade social e comunitária.

Com as revoluções modernas, na Europa, surge um novo tipo de intelectual, o cientista, organizando o saber da sociedade a partir de pesquisas empíricas. Houve algumas fricções entre as confissões de fé e as científicas. Mas não tanto como se imagina. Afinal são inúmeros os casos em que o insight científico surgiu de um sonho como parece ter acontecido com Descartes com a geometria analítica. Também são muitos os exemplos de cientistas que são praticantes religiosos e vice-versa. De todo modo, graças à ciência podemos, hoje, usufruir das vacinas, da energia elétrica, do automóvel, dos celulares e da internet. Mas o avanço da filosofia, das ciências, da literatura e das artes, teve uma condição: a liberdade do intelectual cientista para criar livremente sem estar submetido a constrangimentos morais, emocionais ou mágicos que limitem o livre saber.

Anti-intelectualismo é a ação de colocar sob suspeita moral a autoridade legítima dos cientistas, filósofos e escritores. Sua base emocional é o desencanto com a utopia moderna da emancipação racional humana, reforçando visões apocalípticas. O anti-intelectual é um improvisador de crenças mal elaboradas e vendidas como verdadeiras. Trata-se de um falso hermeneuta sem compromisso ético com a construção de saberes coletivos científicos ou religiosos. Sua meta é frequentemente a busca por poder, enriquecimento ou simplesmente preencher um vazio existencial. A democracia apenas prospera com um intelectualismo generoso e plural, ao passo que regride com o anti-intelectualismo. O sucesso da democracia depende de escutar e se fazer ouvir, de aceitar o pluralismo de ideias e de identidades, de criar mecanismos de inclusão e de reconhecimento individual e coletivo. No Brasil, ela sempre esteve associada a dois movimentos intelectuais vigorosos: a universidade pública e a imprensa. A primeira se constituiu no dispositivo mais amplo de promoção da ciência, do ensino e da pesquisa com inclusão social. Também compartilharam deste espírito público as universidades confessionais e algumas privadas que souberam modular busca de lucro com missão social. A segunda, a imprensa, foi e é decisiva para dar transparência às informações e subsidiar a opinião pública. A revolução francesa também não teria tido sucesso sem a tecnologia de Gutenberg que ajudou a fazer circular as ideias em larga escala. Por sua vez, para o antropólogo Benedict Anderson, a formação dos estados nacionais na América Latina seria em larga parte dependente do capitalismo editorial.

Neste momento de amplo desencanto existencial e político é importante valorizar o intelectual que pensa a sociedade com generosidade e sem preconceito e revanchismo. Também é importante denunciar os anti-intelectuais que divulgam teses distorcidas que visam não contribuir para a organização de consensos mas para alimentar o ódio, o ressentimento e a divisão social. As divergências de ideias não devem ser vistas como ameaças, mas como condição para a manutenção das práticas democráticas. Os intelectuais como categoria de indivíduos que se expressam por conhecimentos legitimados pela ciência ou pela fé têm o compromisso de não usar a palavra em vão, mas para promover teses que alicercem a aliança social fundada na solidariedade e no respeito mútuo. Como no jogo de futebol: tem que haver regras comuns, mas, sobretudo, dois times que respeitem suas diferenças e transformem a disputa pela bola num belo espetáculo coletivo.

* Professor de Sociologia da UFPE e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas)