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Falou em cultura, puxo logo o revólver

Caio Paiva -
Ilustração página 9 de 22 de fevereiro
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Numa época de violações generalizadas contra minorias, censura a obras artísticas e polarização ideológica, duas grandes áreas foram colocadas na linha de tiro dos novos ocupantes do poder: os direitos humanos e a cultura. Tudo que vier daí será considerado suspeito e corre o risco de ser taxado de comunista ou subversivo. Depois de extinguir o Ministério da Cultura, o governo anunciou que dará início pela Petrobras à revisão de sua política cultural pública com o objetivo de reduzir, ou simplesmente cortar, as verbas destinadas ao patrocínio na área cultural. Os setores mais afetados serão o do audiovisual e das artes cênicas, que passarão por um verdadeiro desmonte.

Companhias de Dança internacionalmente reconhecidas, como a de Deborah Colker e o Grupo Corpo, e a Orquestra Petrobras Sinfônica poderão ser banidas do mapa. Bolsonaro prometeu libertar o país do pensamento politicamente correto, seja lá o que isso queira dizer, seguindo os passos da nova direita conservadora trumpista. Há um manifesto temor do presidente e seus ministros quanto aos efeitos simbólicos e reais de uma atividade cultural livre e democrática.

Em todas as escalas, seja à direita ou esquerda, regimes autoritários consideram a liberdade artística nefasta ao seu poder de manipulação. Classificam a arte ora de "degenerada" ora de "alienada", censuram obras, prendem ou enviam artistas para os campos de concentração nazista ou o Gulag soviético. Herman Goering, chefe da Gestapo de Hitler, cunhou uma expressão que ficou como exemplo histórico: "Quando ouço falar em cultura, saco logo o meu revólver". Na realidade brasileira atual, o contraponto é feito pela liberação do porte de armas e o pacote de medidas do ministro Moro para a segurança pública, com a institucionalização do assassinato e do extermínio social.

Sob a nova gestão de Roberto Castello Branco, a política de patrocínios da estatal terá como foco empresas de ciência e tecnologia e a educação infantil. Saem de cena grupos consagrados que formaram gerações e deram projeção internacional ao país.

A hostilidade da petrolífera em relação à manutenção dos projetos culturais provocou divergências internas. Artistas, agentes e empresários culturais aguardam o melhor momento para se manifestar. Ao eliminar a subversiva palavra cultura do organograma ministerial, Bolsonaro deixou claras suas intenções para com a área. Diante de reações da sociedade, sua equipe fez um arranjo e ela foi incorporada à pasta da Cidadania. Como algo de segunda classe, que causa temor ao governo perdido no emaranhado da reforma da previdência, na disputa interna pelo poder e no laranjal do PSL.

Aos poucos, a omissão criou uma situação de paralisia no setor. Mudanças na Lei Rouanet, que terá o teto de captação rebaixado, foram suspensas. Fundamental para a definição de regras para o cinema brasileiro, a Secretaria do Audiovisual foi entregue a pessoas desconhecidas. A Associação Brasileira de Cineastas, (Abraci) lamenta a falta de diálogo e de propostas. Instituições consagradas como a Rádio MEC-FM sobrevivem sem recursos. E o esqueleto abandonado em que se transformou o prédio em ruínas do Museu Nacional do Rio, na Quinta da Boa Vista, ainda não tem verba definida para sua recuperação.

À semelhança do que ocorreu na área de Direitos Humanos, com a formação da Comissão Arns, anunciada na semana que passou, o setor cultural precisará de um mecanismo social de proteção e retaguarda que garanta sua sobrevivência em liberdade. São bens, espaços, obras, toda uma produção material e imaterial do vasto e contraditório universo da cultura que se expandiu nos últimos anos, após o final da ditadura.

Vinte intelectuais de projeção nacional, entre os quais cinco ex-ministros, se uniram para formar a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo que criou em 1972 a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, que acolheu perseguidos pelo regime militar. A Comissão vai monitorar as denúncias de violações e zelar para que os direitos de todos sejam garantidos. A Cultura está à espera de um gesto dos intelectuais, artistas e criadores para a criação de sua comissão Arns.

* Jornalista e escritor

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