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Por que educar em casa?

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Das 35 metas para os primeiros 100 dias de governo Bolsonaro, quatro dizem respeito a educação, sendo apenas uma estabelecida pelo MEC (alfabetização). A medida que tem recebido mais destaque na mídia e nas redes sociais é aquela do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos: a regulamentação do ensino domiciliar. Essa pauta já foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro do ano passado, com decisão contrária. A maioria dos ministros alegou justamente a falta de regulamentação, mas dois deles - Fux e Lewandowski - foram além, numa interpretação que indica a inconstitucionalidade da modalidade educacional.

O ensino domiciliar é uma pauta histórica de grupos religiosos e é publicamente representada pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). Segundo o site da instituição, "a Educação Domiciliar ocorre quando os pais assumem por completo o controle do processo global de educação dos filhos, ou seja, além do ensino de valores, hábitos, costumes e crenças, se responsabilizam também pelo chamado saber acadêmico que, normalmente, ficaria a cargo da escola". O site afirma ainda que "a Aned não se posiciona contra a escola, mas a favor da prioridade dos pais no direito de escolher o gênero de instrução a ser ministrado aos seus filhos", e descreve como perfil dos pais que optam por educar fora da escola aqueles "que decidem assumir a total responsabilidade por essa formação".

Esse desejo por parte dos pais é bastante suspeito, a partir de uma concepção de educação em que o contato com diferentes visões de mundo é não apenas desejável, mas essencial para o desenvolvimento da tolerância e para a construção do tecido social. Nessa perspectiva, a escola é um espaço de interface entre o mundo privado da família e da igreja e o mundo público da sociedade como um todo.

Enquanto a Aned levanta a bandeira do direito de escolha dos pais, nossa preocupação é resguardar o direito dos filhos menores de idade. Separamos, então, em três grandes categorias, os motivos, segundo a Aned, pelos quais famílias optam pelo ensino domiciliar: qualidade acadêmica; preservação de valores e crenças religiosas; preocupação com a segurança física dos filhos (alegando casos de bullying e acesso a drogas). Fazemos, agora, um convite à reflexão.

Quanto à formação acadêmica: se é necessário que os profissionais sejam formados - regulados e avaliados pelo MEC - para serem contratados como professores, porque seriam pais mais competentes para desempenhar tal função? Vale lembrar que, segundo o IBGE, apenas 15% da população brasileira têm ensino superior.

Quanto à preservação de valores morais e crenças religiosas, isso já é um direito garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 16. Quais seriam os valores e crenças que estariam sendo desrespeitados pelas escolas e que justificariam a subtração dos estudantes desses espaços? Cabe pontuar que por trás de tal discurso, demasiadas vezes reside a perpetuação de preconceitos, que o conjunto da sociedade já decidiu que não devem ser perpetuados, inclusive com tipificação criminal.

O mesmo artigo do ECA garante também o direito à liberdade de opinião e expressão, assim como a de ir e vir e a de buscar refúgio, auxílio e orientação. Esses pontos são importantes para abordarmos a terceira categoria de motivos. Se por um lado, os pais temem pela segurança de seus filhos na escola, por outro, sabe-se que, no Brasil, a maior parte das violências sofridas por crianças se dão no ambiente doméstico. Frequentemente, a escola é o único espaço de contato da criança com adultos que não têm uma relação com os pais e que podem protegê-la e denunciar os maus tratos a autoridades. Além disso, admitindo-se que existem, sim, problemas de drogas e bullying, a remoção permanente da possível vítima, ainda deixa as outras crianças expostas ao mesmo tipo de violência, sem resolver o problema.

Por fim, chama atenção que uma medida que visa favorecer 5 mil famílias (de acordo com a Aned) tenha tamanha primazia num país com mais de 40 milhões de crianças precisando ser educadas. Mesmo que ensino domiciliar fosse solução, qual é o risco em termos de saúde física e mental a que vamos expor essas crianças? Que garantias teremos de que sua liberdade e dignidade serão respeitadas? A Constituição Federal, no artigo 205, designa a educação como "direito de todos e dever do Estado e da família". Não podemos prescindir dessa responsabilidade dupla. Precisamos de políticas universais, que estruturem boas escolas, em condições adequadas para que todos os professores possam ensinar e alunos aprender.

* Servidora da Fundação Cecierj e mestranda em Ciência Política na UFF