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Antiurbe

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Foi lendo "Um Estranho em Goa", do Agualusa, que aprendi que existe por lá "um terrível demônio chamado Narkasura", mas logo acrescenta: "São as monções". Não há que se ir ao Google, pois já vos digo: Goa é antiga possessão portuguesa, nossa irmã de leite naquele projeto colonial ultramarino, mas fica no Índico. Monções são as cíclicas inundações que ocorrem por todo o sul do continente asiático.

É típico das comunidades que usufruem de determinado perfil tecnológico atribuir poderes divinos às forças da natureza. No caso goês demonizaram as monções.

Mas a urbanização apareceu para resolver tudo isso. Autores como Gordon Childe classificam o surgimento das cidades como a Revolução Urbana. Mesmo Munford, que delas tem horror, não lhes tira o mérito de terem rompido o entrave ao crescimento populacional, por proporcionarem técnicas para grandes alterações nos sítios naturais, com aumento considerável da produção de alimentos e, destarte, do contingente humano. Há quem credite às cidades, por outro lado, a escravidão em larga escala como regra.

Cidades não são, portanto, unanimidade de crítica, mas inegavelmente são um sucesso de público. A fila de gente querendo entrar não para de crescer.

Creio, assim, que deus, na forma que o adotamos hoje, é uma criação urbana. Seu título de "Supremo Arquiteto do Universo" não lhe terá sido ofertado à toa.

Mas para chegar à natura ainda usamos santos. Santa Clara manda sol. São José nos livra da seca. São Pedro... porém, com grande aparato tecnológico que a cultura urbana do Século XXI nos oferece, nos foi anunciada, semana passada, com dias de antecedência, o desembarque de Nakarsura no Rio de Janeiro.

Não sei que nome assumiu aqui, mas era ele. E nosso Prefeito, avisado pelas pitonisas do clima, tomou todas as providências que devem ser tomadas diante da chegada de demônios: deixem o lixo em casa, avisou.

Ocorre-me que, há anos, quando se restaurava a Sé, na Primeiro de Março, escavado o subsolo, encontrou-se um degrau de lioz, prova da existência da antiga ermida, construída no início da ocupação portuguesa, cerca de um metro e meio abaixo do nível da rua que vemos cá. Emocionado, declarei na ocasião: o Rio é invenção carioca.

Sendo a cidade, desde sempre, uma das que mais alterou a calota planetária, causa estranheza que ainda entregue sua chave aos deuses anímicos, como qualquer aldeia neolítica, há milênios, faria. A lista de providências apresentada pelo Prefeito foi, diante da iminência demoníaca, a de uma cidade sitiada. Nakarsura enfurecido: pouco a fazer, além de suspender as aulas, é claro.

Fico pensando se estamos diante da pior administração municipal dos últimos tempos ou se ela apenas responde (mal) a um determinismo histórico: a retração urbana.

Voltando à metáfora do auditório, a plateia esvazia-se. Parte deixa o teatro, parte lotará a já apinhada galeria e lembremos que sucessivas alterações quantitativas geram alterações qualitativas, ou seja, a cidade que se retrai não se tornará apenas uma cidade pequena: com o avanço da retração, ela se transformará em outra coisa.

Continuará sendo um aglomerado, por certo, mas as características próprias da urbanização, sendo a urbanidade, a primeira a ser ultrajada, irão desaparecer, dando início a aberrações como o inacreditável vagão de mulheres ou a contínua usurpação predatória do espaço coletivo.

O neo-extrativismo, ao transformar praças em área de desmonte de sucata, sinaliza o fim da economia urbana, propriamente dita, e o que impede o retorno ao simples escambo é vivermos o grande paradoxo tecnológico pelo qual atividades primitivas aceitam cartão de crédito. Começa a ficar evidente porquê ao elegermos o cacique nos entregaram o pajé, antecipando-nos insólita condição: a desurbanização. Com vocês: a Anticidade.

* Arquiteto e urbanista, DSc