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A empatia, a dor e a beleza nossa de cada dia

Gabriel Souza -
Ilustração página 9 - 17/02/2019
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O ano começou difícil. Sucessivas perdas nos fazem mais pobres de diferentes formas. Na avalanche de lama, centenas de vidas foram ceifadas. Engolidas pelo descaso e ganância, memórias foram apagadas e encobertas por um manto marrom. Escuro, estéril e ensurdecedor. Na recente enchente do Rio de Janeiro, desaguamos o choro dos que perderam casas, foram arrastados ou se viram ilhados e entrincheirados em pleno perímetro urbano, como se em meio à selva estivessem, com rios caudalosos e vegetação cadente. Cidade devastada por governos corruptos, o Rio não foi vítima apenas da impetuosidade da natureza, mas também da negligência e impunidade contínuas daqueles que foram eleitos para administrar e tutelar o patrimônio material e imaterial do carioca.

E o que dizer de meninos cujos anseios arderam e desvaneceram? Um grupo de exímios jovens jogadores, que aprendiam a ser disciplinados e a seguir regras em prol de um sonho maior, não está mais entre nós. Regras? Quem cuidava dos garotos parece não ter seguido as normas mínimas necessárias para acolher e proteger vidas tão tenras e preciosas. E no menosprezo alheio, lá se foram os moços, despedaçando suas famílias eternamente. Precoce também foi a morte do pequeno menino, que, sem ter consciência da extensão dos perigos a sua volta, escapou das mãos da mãe, no metrô, e seguiu rumo ao túnel escuro. Fatalidade, mas que lancina tal qual o episódio dos rapazotes do Flamengo. Aprofundando a comoção e tristeza destes dias, cai sobre nossas cabeças a morte de um dos mais lúcidos jornalistas. Sem Ricardo Boechat, o país será menos inteligente, alegre, elegante e crítico.

Fará enorme falta no Brasil em franca disputa de narrativas. Em uma sociedade onde proferir descalabros como se fosse a mais sólida das verdades tem tomado o lugar do diálogo sensato e da análise honesta e arguta. Imensa lacuna se abre com mais esta morte abrupta. Sobre os dramas recentes, o jornalista nos legou, dentre tantos outros, um questionamento importante: "como sociedade, queremos continuar lidando com essas tragédias, pranteando-as no início e esquecendo-as logo depois? A tragédia de Brumadinho já sumiu das primeiras páginas..." E na manchete desta semana, nova perda. A diva dos musicais brasileiros, Bibi Ferreira, aos 96 anos, nos deixa como sonhou: repousando e serena. Dama dos palcos, o rouxinol de tantas vozes adormeceu. Antes disso, Edith Piaf, Amália Rodrigues e Frank Sinatra, em corpo e alma, habitaram a mulher de muitos amores.

Aos vinte e quatro dias de vida Bibi entrou em cena pela primeira vez. Substituía uma boneca que os contrarregras não conseguiam encontrar na coxia da peça "Manhãs de sol", de Oduvaldo Vianna. Alguém lembrou que o bebê do jovem Procópio estava com a mãe, no camarim. E então Bibi entrou em cena nos braços da madrinha Abgail Maia. E não mais saiu do teatro. Lá desempenhou diferentes funções, pelas quais foi laureada diversas vezes: roteirista, tradutora, diretora, autora, são algumas delas. Artista desde e para sempre, é fortaleza inconteste de nossa arte que, no momento de polaridade e mediocridade intelectual que vivemos, insistem em combalir. Nos dias atuais, demonizam os artistas, como se, mais que dispensáveis, fossem opositores ou párias da nação. Ao mesmo tempo, depreciam e deturpam a Ciência, tratando-a como mera especulação, questionando o conhecimento construído em bases sólidas por séculos. No entanto, ambas constituem instrumentos fundamentais para interagir com o mundo.

Empatia: é nesta palavra que as pessoas deste texto se unem. Se os dirigentes, públicos ou privados, se colocassem no lugar das famílias e grupos sociais que governam, zelariam por todos e não colocariam uma vida sequer em risco, por qualquer valor que fosse. E então não haveria lamaceiro, as águas escoariam em mansidão e os meninos adormeceriam em segurança, despertando, a cada dia, para realizar seus sonhos. Era também a empatia uma das grandes forças de Boechat. A habilidade de se comunicar com diferentes públicos, nos quais se incluíam pessoas muito distantes de sua origem social, provém da capacidade de abraçar os interlocutores em variadas dimensões. Ou seja, de ser empático. Centenas de taxistas ou incontáveis trabalhadores assalariados o ouviam enquanto se dirigiam ao trabalho nos longos engarrafamentos nas ruas do Rio.

E o que mais dizer sobre Bibi? Ser atriz é poder viver inúmeras vidas em uma só. É ato de coragem e resistência. Na magia dos palcos, a boca seca, o coração palpita e teme-se que as palavras se desbotem em branco. Há também aquele temor de se reconhecer mais na vilã, que na mocinha. Mas antes de tudo, a bravura maior é estar disposta a viver a aventura de descobrir novas formas de estar no mundo e pensar. Independentemente das técnicas de interpretação a que se recorra, gênero ou estilo, para compor um personagem, qualquer que seja, é preciso compreendê-lo, se dedicando a desvendar as razões que o levam a agir de determinada maneira e não outra, sem juízo de valor. Por outras palavras: ser atriz é exercer a empatia como forma de arte. As artes têm muito a ensinar no mundo rascante de agora, e, não por acaso, vêm sendo sistematicamente atacadas.

Às famílias que se despediram de seus entes queridos, os votos de que o encantamento pela vida seja mais forte e renasça em corações tão feridos. Para todos nós, que reste a esperança de que as perdas sirvam, ao menos, como ensinamento e forma de evitar que eventos similares ocorram e devastem outros tantos. Ao jornalista e à atriz, obrigada por fazerem o mundo mais digno, engraçado, esperançoso, e despertarem o melhor do ser humano: a capacidade de refletir pela emoção e afeto. Que cintilem para sempre e ajudem aos que sofrem a reencontrar a beleza de viver e a resgatar a fé na humanidade. E que sigamos todos acreditando...

* Mestre em Teatro e doutora em Ciências

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