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Os indígenas já são gente, senhor presidente

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O presidente da República tem declarado que pretende fazer com que os indígenas sejam “gente como a gente”. Em outro momento, declarou que pretende permitir que os indígenas vendam suas terras e que não demarcará nem mais um centímetro de terra para essas comunidades.

O ponto de vista do presidente parte, sem ele perceber, do preconceito da supremacia cultural de “gente como a gente”.

É uma premissa muitíssimo antiga. No século 16, quando a poderosa Espanha conquistava os mares e as Américas, precisava de uma filosofia que fundamentasse a conquista do Novo Mundo, à custa da vida dos seus habitantes. O padre Juan Ginés de Sepúlveda foi chamado a construir tal teoria, e seu primeiro problema teórico foi destituir os indígenas de sua condição de humanidade. Para isso, descreveu-os como sub-humanos, quase animais, merecedores de castigo por cultuar divindades. Depois, tratou de legitimar a expropriação de suas terras, dizendo que, se eles não a detinham como coisa própria, revelavam sua condição de submissos e a Coroa espanhola poderia se apropriar delas.

No século seguinte, era a Inglaterra que dominava os mares e se lançava sobre a América. Coube ao filósofo inglês John Locke aperfeiçoar a teoria. Advertiu que havia povos incultos que não se uniram ao gênero humano e que eram incapazes de explorar toda a terra que tinham. Por isso, a Coroa inglesa poderia se apropriar das parcelas improdutivas e, em caso de resistência dos ocupantes, declarar-lhes uma guerra justa, ao final da qual seria lícito expropriar toda a terra dos indígenas como indenização pela guerra.

Esse pensamento da supremacia cultural parecia estar superado depois que os antropólogos nos ensinaram a respeitar a cultura indígena. Foi preciso estudar as sociedades indígenas e aprender seu modo de vida. Eles nos mostraram que essas sociedades são construídas sobre outra base cultural: por exemplo, o indígena que detém a autoridade política é tão somente porta-voz das tradições do seu povo, herdadas dos antepassados; a liderança não convive com a coerção, mas com o respeito que inspira; a economia tem por base a satisfação das necessidades de toda a tribo, sem que seja necessária a acumulação de bens materiais; o trabalho de cada indivíduo não precisa ultrapassar quatro horas por dia para que toda a tribo seja suprida do essencial; a desigualdade, a exploração e a divisão social são impossíveis nos povos indígenas.

Hoje também sabemos que suas terras produzem um capital natural invejável: oxigênio e água limpa que o mundo todo consome, porque o indígena sabe viver em harmonia com o meio ambiente, sem poluí-lo.

Pretender que as terras da União, que os indígenas detêm a posse, sejam vendidas, além de inconstitucional, é o passo que as grande mineradoras estrangeiras estão esperando para destruir as florestas brasileiras.

Dizer que não demarcará mais nenhum centímetro de terras, além de ser também inconstitucional, significa descumprir cerca de 54 decisões judiciais que já determinaram ao governo cumprir o que a Constituição ordena.

Os indígenas já são gente, senhor presidente, mas gente diferente. Precisam somente que a Constituição os protejam de gente como a gente.

* Desembargador aposentado do TJRJ; professor adjunto da Uerj