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A casa que construímos

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Até que ponto nos distinguimos como espécie humana? Habitamos nossas ações e através delas nos comparamos uns aos outros. Em comum, a estrutura orgânica e, por diferença, o uso que dela fazemos. O enredo que traçamos une nossas escolhas em um desenho que esteticamente se mostra – a nós mesmos e aos outros. Um encadeamento de escolhas complexas tais quais as circunstâncias que se impõem ao amontoado humano que, supôs-se um dia, gregário. Fácil almejar um final nobre e digno, porém difícil garantir que cada uma de nossas práticas, que compõem nossa vida, realmente será virtuosa. Com os gregos aprendemos que o ser humano só será feliz se praticar prazerosamente o bem, mas, ainda assim, não haverá felicidade individual possível se o coletivo não for próspero. Todavia, diante de indigência e fome associadas a individualismo e desumanidade crescentes, vemos que fracassamos nestes 2500 anos que nos separam da “Ética” aristotélica. Lars Von Trier em recente filme – “A Casa que Jack construiu” –, entrelaçando poética e ética, faz emergir a questão.

Que casa construímos? Heidegger nos diz que “poeticamente, o homem habita”. Afora esse lugar metafísico do ser, não haveria construção possível. Na “Poética”, Aristóteles compara este lugar à pintura e, por analogia, diz que o encadeamento de nossas ações é a linha que forma a figura, e o nosso caráter – resultado das nossas escolhas –, as cores inicialmente lançadas aleatoriamente, mas que se harmonizam a partir do traçado que as encaminha na busca da beleza; do bem. O que temos disponível – a matéria para forjar o belo, o deliberar nas situações da vida – constitui nosso caráter; e o encadeamento destas ações revelará a figura que nos essencializa.

Muitas vezes trágicos resultados se desvelam, como Édipo, por exemplo, que, mesmo refletindo para bem deliberar, por desconhecimento dos fatos acaba por matar o próprio pai e casar-se com a mãe. Aprendemos com ele que há limites na deliberação humana, já que inevitavelmente há elementos imponderáveis que nos cercam, e esta já seria dose suficiente de tragédia – as catástrofes inerentes ao equilíbrio natural, o acaso, a ignorância. Mas não. O ser humano também “erra” ao deliberar, mesmo conhecendo os elementos que o circunscrevem; ora por sentir prazer na prática do mal, ora por supor que aquele meio levaria a um fim melhor, para si ou para o todo. Jack – serial killer de Von Trier – parece estar no primeiro caso, do kakós – termo grego para “homem mau ou perverso”, que sente prazer em praticar o mal. Para os gregos, o desafio humano, em sua errância na busca da felicidade, é sentir prazer ao praticar virtudes, e dor ao praticar vícios. Jack faz exatamente o contrário: seu prazer se esvai na medida em que se afasta de seu último crime; e, diminuto, sem obscura ilusão, lança-se novamente ao aprazível vício para fugir da dor.

Este lugar da poesia, da arte, que nos plasma o horror do ser humano – ora carneiro, ora tigre, usando imagem do cineasta – é também o que nos leva à reflexão sobre o que construímos coletivamente e como agimos individualmente. Quando Aristóteles, na “Poética”, indica a boa tragédia como aquela que provoca “terror e piedade” no espectador/leitor, refere-se ao poema capaz de revelar a natureza da condição humana. O filósofo sinaliza que, pelo medo de que aquela narrativa trágica se desse consigo ou com as pessoas que ama, o espectador/leitor entraria em um processo de reflexão tal que retornaria à sua vida mais propenso a escolhas ponderadas. Mutatis mutandis, este também é o lugar do sublime apontado por Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar. Distinto do belo que acalenta e pretendemos universalizar, o grandioso “sublime” – seja ele natural ou produzido – despertaria o espanto; o ser do humano.

Diante de guerras, injustiça social, violência, miséria e desespero da solidão e do desamparo nas ruas das cidades, indagamo-nos que casa construímos para habitar. Diante de líderes voltados aos próprios interesses, que levantam muros frente aos necessitados e aos que são diferentes e querem viver de outro modo, indagamo-nos que casa construímos para habitar. Diante de um populismo que desestimula pensamento e senso crítico, indagamo-nos que casa construímos para habitar. Procuramos não olhar. Resignamo-nos no discurso da impotência. Por vezes queremos praticar o bem, mas, sem admitir, já estamos dentro da casa nefasta que, por omissão, ajudamos a erguer. Negamos a horrenda construção que mesmo o malvado Jack se recusou a ver, até ser encorajado pelo poeta Virgílio – alma-guia do profético Dante.

* Doutora em Filosofia e pesquisadora do Pragma, da UFRJ