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Darwin e a involução

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De onde viemos? Esta é uma das perguntas mais inquietantes para a humanidade. A questão, em diferentes medidas, perpassa a existência de cada um de nós como indivíduos, e, também, como integrantes de uma espécie que compartilha o planeta por milhões de anos com outras tantas. Muitas respostas, em múltiplas áreas e abordagens, foram e são construídas na tentativa de resgatar o elo que nos ligaria à origem primitiva. Nesse campo de indagações, especialmente, o grande cisma entre ciência e religião se acirra, enevoando a lucidez necessária para a leitura honesta, ampla e irrestrita da realidade.

Charles Darwin é um dos protagonistas na discussão sobre a origem das espécies. O britânico criou as bases, no século 19, para a teoria que passou a constituir paradigma central da biologia. Por tratar de tema capital, que abrange aspectos de cunho profundamente filosófico, foi alvo de debates inflamados desde sua concepção, até que, dada a consistência dos argumentos, sua importância e pertinência, foi reconhecida. Baseada na seleção natural, em interação com as transformações ambientais, é aceita até hoje. Ou era... Ultimamente ouve-se por aí que o legado de Darwin é “apenas” teoria...

No cotidiano, frequentemente, a palavra teoria enseja conotação negativa. Soa como algo apresentado sem qualquer embasamento ou possibilidade de comprovação. Compreendida como especulação, costuma ser encarada como mero “achismo”. Contudo, aplicado à ciência, o vocábulo ganha acepções específicas, distintas dos significados atribuídos ao uso corriqueiro do termo, e, entre a coloquialidade e o léxico científico, vários ruídos de comunicação são produzidos. Alguns parecem ser frutos de confusão honesta e espontânea. Outros, tendenciosos.

Fato é que, de forma ampla, o papel da ciência é compreender e explicar o mundo onde vivemos, e, por extensão, de maneira eventual, criar produtos tecnológicos, ou sociais, que facilitem e melhorem nossa qualidade de vida. Para cumprir tal missão, a metodologia científica se apoia em etapas diferenciadas, conceitos diversos e parte da proposição de idéias que sejam passíveis de teste e que visam esclarecer como os fenômenos ocorrem. São as chamadas hipóteses científicas.

Uma hipótese, quando submetida a exaustivos mecanismos de testagem, e, ainda assim, se mostra plausível na função de explicar determinada ideia, é alçada à categoria de teoria científica. Ou seja, no âmbito da ciência, teoria é a confirmação de uma hipótese. É um conjunto de saberes sistematizados referentes a determinado tema ou problema a ser esclarecido. É construção de conhecimento estruturado que inclui elementos vários, tais como: evidências, postulados, ou axiomas, por exemplo.

Assim, não se pode minorar a importância dos conhecimentos produzidos pela ciência em um dos questionamentos mais profundos do ser humano, como se consistissem em simplórias elucubrações, destituídas de dedicação árdua, pormenorizada e metódica. Não se trata de considerar a ciência como única forma de compreender o mundo, mas de respeitá-la como empreendimento que afastou o homem de dogmas cristalizados por séculos ao propor formas de verificação do que é observável e que era apresentado como inquestionável.

Haverá, sempre, numerosas formas de interpretar a origem da vida. Todas devem ser consideradas e respeitadas na medida em que, potencialmente, podem dialogar entre si, complementando conteúdos e sentidos. Ao mesmo tempo em que Darwin registrava a exuberante natureza em seus meticulosos diários de viagem, Rugendas criava pinturas, litografias, aquarelas e desenhos nos quais detalhava paisagens brasileiras vistas pelo naturalista inglês. Tanto nas imagens do artista, quanto nas palavras do cientista, é possível identificar o olhar idílico, no qual a natureza é vista como bela, selvagem, intocada e perigosa.

Há estudos que exploram a influência dos poetas românticos ingleses na forma como Darwin redigiu suas anotações. Na prática, há conexões por toda parte. As artes, em sua liberdade poética e profusão de gêneros e linguagens, contribuem para as respostas às questões originais. Das tragédias gregas aos sonetos de Shakespeare, a pergunta sobre de onde viemos e quem somos, ecoa. As mitologias nos brindam com histórias que convencem pela beleza e encantamento. As diversas culturas, por sua vez, nos presenteiam com ricas cosmogonias que nos fazem visitar o momento da criação por meio de expressão simbólica. São muitas as maneiras de investigar a origem da vida. Entretanto, não se pode perder de vista que cada qual possui raio de ação próprio.

Na religião, a ligação com o princípio se dá por meio daquilo que se acredita “apesar de”, sem espaço para refutações. Por outras palavras: da fé cega. Na ciência, a volta às origens ocorre pelo avanço do conhecimento, no qual a dúvida e o constante questionamento crítico devem ser alimentados. Na arte, o elo e o belo caminham ladeados, criando novos mundos. E em um livre exercício de imaginação, suponhamos que Darwin retornasse ao nosso tempo. Em pleno século 21, ao se deparar com certos espécimes humanos, talvez, ele próprio reconsiderasse o termo “evolução”. Mesmo para as mentes mais refinadas intelectualmente, é tarefa difícil decifrar tamanha involução que parece nos assolar.

* Mestre em Teatro e doutora em Ciências

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