ASSINE
search button

A beleza que nasce do paradoxo

Compartilhar

O berço do teatro ocidental está em um lugar onde deuses e humanos parecem estar presos de forma mútua e eterna. Repousa sob céu cintilante, em colinas nas quais personagens mitológicos se misturam aos cidadãos comuns e traçam linhas tênues entre realidade e fantasia. O nascedouro da arte teatral europeia está na Grécia, entre olivais e ruínas teimosas que há séculos nos contam sobre politeísmo, rituais de adoração, democracia, arte, ciência, poderio, guerras, beleza e harmonia estética. Certamente a origem do teatro, arte milenar que é, não está plenamente desvendada e não pode ser atribuída a fonte única. A herança que nos chegou mais intacta foi o registro de Aristóteles em sua “Poética”. Contudo, há escritos anteriores à época grega que mencionam expressões dramáticas em áreas distintas do Oriente que viriam a se transformar em formas teatrais complexas.

Na Hélade, o “Teatro de Epidauro” é um dos mais emblemáticos. Desde seu planejamento, agregou ciência e teatro em diferentes âmbitos, seja na concepção do edifício ou nos variados usos do espaço. Por ocasião da construção, a tecnologia da época, baseada, principalmente, na engenharia e mecânica, foi empregada para proporcionar projeto acústico ambicioso. Os criadores pensaram no terreno mais apropriado e realizaram sofisticados cálculos matemáticos para chegar ao formato, declives e aclives ideais perseguindo visualização e sonorização perfeitas para a plateia. O intento foi alcançado.

O resultado é um magnífico espaço com capacidade para 14 mil pessoas, aproximadamente, cuja vida se estende por mais de 25 séculos e possui uma das acústicas mais eficientes, se consideramos os grandes anfiteatros pelo mundo. Uma imponente arena onde, mesmo dos assentos mais longínquos, o som de uma pequena moeda que toca o chão é audível.

Em ótimo estado de conservação, é utilizado até os dias de hoje e nunca se restringiu à apresentação de tragédias e comédias. Erigido em área remota, ao lado de um centro de curas medicinais, Epidauro esteve ligado à medicina desde sempre, uma vez que, àquela altura, a música era compreendida como verdadeiro remédio para moléstias do corpo e da alma; e o teatro grego, por sua vez, baseia-se na experiência musical. Assim, os pacientes do centro vizinho frequentavam o teatro ao lado com fins terapêuticos. Para Aristóteles, as tragédias eram capazes de promover a catarse na audiência, uma vez que diante de fatos tão horrendos apresentados na trama, os espectadores seriam levados à sensação de alívio e purgação dos humores ao constatarem que a catástrofe acontecera ao protagonista, e não a eles próprios. O filósofo, dentre outros atributos, conferiu ao teatro utilidade terapêutica.

O berço do teatro é também nascedouro da democracia, onde a liberdade de expressão, inviolável por princípio, é apreciada e cultivada a partir de múltiplas linguagens e visões. Platão, ao conceber a cidade ideal, expulsou o poeta da pólis. Segundo sua concepção haveria dois universos: o das ideias e o sensível. No primeiro, estariam os modelos originais, a essência e fundamento dos seres e coisas. O segundo, concreto, onde vivemos, seria local de meras cópias sensíveis destes originais. Na filosofia platônica, o artista seria, portanto, a cópia da cópia, na medida em que cria representações de um mundo que já é imitado da matriz idealizada. Seria, portanto, um mentiroso profissional a ser banido. Aristóteles resgata o artista em sua concepção de sociedade ao conferir à imitação qualidade pedagógica que educa a humanidade e norteia suas ações.

Ao acreditar no deus do teatro, Dionisio, os gregos investiram na ciência e tecnologia para honrá-lo. É deste aparente e belo paradoxo, no qual confluem teatro, ciência e religião, que nasce o Teatro de Epidauro, um dos mais harmônicos anfiteatros da Antiguidade, para viver e ser reinventado infinitamente. E o que o primoroso legado poderia ressoar nos dias de hoje, quando, tantas vezes, o que é dito não é ouvido? Quando o que é ouvido é distorcido? Quando muitos tampam os ouvidos ou são acometidos por surdez seletiva? Quando não há empenho em escutar a si mesmo e ao outro?

Epidauro parece bradar que até as pequenas moedas precisam ser ouvidas e que o conhecimento será tão mais pleno quanto estiver articulado às questões prementes de seu tempo e às variadas formas de saber. Ecoa que o diálogo verdadeiro pressupõe escuta honesta e sopra em nossos ouvidos e corações as palavras de Hipócrates: “A arte é longa, a vida é curta”.

* Mestre em Teatro e doutora em Ciências