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O Tempo

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O tempo é força que não se algema.

Assim começava um samba que cometi, pelos dez anos do “Simpatia é Quase Amor”, ou seja, também já tem tempo pacas. O tempo voa.

Mas lendo Dickens, onde gosto de ir à busca da sabedoria que me falta, principalmente para falar de “hard times”, ele nos conta que, em virtude de uma estranha lei da contradição, quanto mais o tempo corre, tanto mais lento parece, e algo parece um antigo costume quando apenas completara algumas semanas.

Lapidar. E, colhido em “Um conto de duas cidades”, referia-se à banalização da guilhotina, enquanto já aqui nos vamos acostumando ao abate por drones.

Mas o que me fez ter uma vívida ideia dessa contradição foi o quadro oferecido pelo prédio fechado de um cinema, onde ironicamente reaparece a sombra de seu nome: Vitória, e que antecedeu à existência efêmera de uma livraria desproporcional aos atuais hábitos de leitura e a uma cidade que perde população.

Sei que essa última afirmação parece duvidosa, posto que a população carioca, a cada censo, é ligeiramente superior à anterior, mas não nos revelam que esse acréscimo é inferior ao crescimento vegetativo da cidade, ou seja, o Rio exporta população: pobres para Queimados, ricos para, sei lá... Miami?

Já os paupérrimos ficam ali mesmo, na Rua Senador Dantas, onde uma dúzia de seres humanos sobrevive sob a generosa marquise do Cine Vitória, que, ao encontro do que Dickens nos dizia, aparentemente sempre estiveram ali.

O impacto do quadro me dá indícios de como se vão formando os vazios urbanos nas cidades retraídas: sucessivos avanços de portas fechadas, idênticas a outras portas que se fecharam pouco antes, e que, com a rapidez do tempo que não se move, tampouco indicam a agudeza da situação: corram, uma cidade está fechando.

O fenômeno, embora mundial, é local. Cada ocaso tem seu caso. Phillip Oswalt, em 2006, chega a lançar um “Atlas das Cidades Retraídas”. Manchester, que inspirou Dickens, com teares mecânicos, tecendo e atando a vida da nascente classe operária, perdera metade de sua população. Detroit, da poderosa indústria automotiva americana, virou símbolo de abandono. Foi onde se cunhou a expressão “brown areas” para identificar os vazios, porém construídos.

Nesses dois casos, a desindustrialização foi responsável. Os tecidos ingleses, porém, asiáticos. Os carros americanos sofreram a concorrência de outros tantos, e acabam por migrar suas linhas de produção para outras plagas.

A indústria do Rio não precisou de caminho tão longo. Afinal, São Paulo é logo ali, e só nas últimas semanas, comentamos da indústria autóctone de cosméticos que, agora com sotaque francês, deixou Nova Iguaçu, ou, como também informou o JB, uma grife, identificada como a “cara do Rio”, disse adeus ao Borel.

Era pequeno, o mar bramia e a indústria de sorvete já partia. Para mim, era uma fábrica emblemática: Jajá, Tombom e Kalú...Dizia-se que quem a visitava, enquanto lá estivesse, tomava todo o sorvete do mundo. Nunca fui... acho que ficava pelas bandas da Mangueira, onde recentemente implodiram o prédio do IBGE, igualmente esvaziado.

O IBGE, em si, esvaziaram depois e corre-se o risco de não haver Censo em 2020, como não houve, aliás, na gestão de Collor: o Brasil não tem Censo de 1990. Só tem 91, vai levar?

O próximo, se existir, avaliará o processo de retração urbana de algumas cidades fluminenses, sendo a capital o problema mais crucial, porque maior.

Menos flexões, mais reflexões, senhor governador eleito.

Afinal, são seis milhões de seres (doze, se a entendermos como metrópole) indo para o abrigo de marquises, encimadas por nomes vistosos que não significam mais nada: Vitória?

Ou Porta do Brasil, Capital Cultural, Berço do Samba.

A propósito, o meu, merecidamente, perdeu, embora rimasse Ipanema com algema.

Um visionário...

* Arquiteto – Urbanista, DSc