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Sacode a poeira

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Já vai longe o ano em que o hoje célebre Zózimo comentava, aqui no JB, que Burt Bacharach apareceu no Chiko’s e improvisara ao piano. Que Amália Rodrigues, naquele julho de 1978, se apresentaria no Rio. E ainda trazia, na mesma coluna, o lançamento da Revista Chão, “especializada em arquitetura”.

Na época, há de ter soado descompassado: a música internacional, com seus astros, e “Chão”, mídia ninja da arquitetura, com seus cinquenta tons de cinza. Só no terceiro número, surge com um azulzinho na capa.

A nova revista abrigava, claro, quem só tinha publicado coisa alguma, mas era generosamente acolhida por gente como Paul Singer ou Carlos Nelson – o da famosa e inédita ação na favela de Brás de Pina – que inaugura a revista com o seu alentado “Estarão as Pranchetas Mudando de Rumo?”

E o Zózimo, hein?

A par disso, os destemidos editores corriam atrás de matéria e, em uma época em que publicações eram trincheiras, lá iam eles para a 30ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a festejada SBPC, onde encontraram nada menos que 40 trabalhos na área de arquitetura e planejamento urbano e de lá trouxeram, conforme o editorial seguinte, “um dos fatores que modelam a feição das nossas cidades”: a Renda do Solo Urbano.

Quem abre a edição é o já citado Paul Singer, com “Uso do Solo na Economia Capitalista”, seguido de dois artigos de professores da USP e mais um, assinado por estudantes da mesma universidade.

“Chão” teve vida curta, em um momento de ebulição de efêmeras inúmeras publicações técnicas, poéticas ou políticas, que buscavam a saída do que lhes era insuportável: a ditadura e a vida que se levava. Ela própria se afirmava em editorial, “comprometida com o momento em que surgia, tentando modificá-lo”... e que “a qualidade de vida nas cidades decai, as soluções governamentais são inócuas ou catastróficas, a memória nacional dilacerada”... para concluir que “um em cada cinco cariocas é favelado”. Quantos serão hoje em dia?

Ainda que nos soem familiar, ao menos não mais se precisa dizer essas coisas com medo (ainda não), ao passo que a revista as sugeria em sedicioso murmúrio.

Sintomaticamente, uma de suas seções traz o nome de “Porão”. Nela, se fica sabendo que o Sambódromo exigira a desapropriação de 300 famílias e que 80% da população do Rio necessitava de 90 minutos para chegar ao centro do Rio... Aparentemente não se propalavam essas coisas, ora triviais, embora ainda inaceitáveis.

A perplexidade nossa aumenta quando “Chão” nos diz que ações de despejo em Guaratiba eram violentas, enquanto, no momento em que escrevo, na cidade mais premiada do país, uma favela, de madeira, é criminosamente incendiada.

Mas o que me fascina ao folhear a revista é perceber que a generosidade dos grandes nomes, ao cederem artigos, se misturava com a petulância, própria dos verdes anos, para almejar um futuro que lhes parecia, naquela hora, passível de construir.

Na coluna da semana passada, uma publicação nascia há 80 anos em uma repartição pública e fazia diferença em seu tempo. Hoje, uma outra, há 40, ressurge-nos como um manifesto que curiosamente soube farejar o porvir: alguns nomes, ora famosos, figuram no tal número azul da “Chão” e lá estão a eminente Ermínia Maricato e os então alunos Raquel Rolnik e Nabil Bonduki, gente cujo trabalho desembocou vitorioso na criação do Ministério das Cidades.

Aquele que tanto nos custou e acaba de ser extinto, levando de roldão outros tantos troféus.

No número inaugural de “Chão”, o jovem editorialista, por acaso este mesmo que ora vos escreve, comenta e enumera publicações sobre arquitetura, que até então haviam surgido no Brasil, e anuncia: “vamos tentar mais uma”.

E agora? Continuar tentando. O que? Sei não, mas se caiu, levanta.

Vâmonessa!

* Arquiteto – Urbanista, DSc

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