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Questão social, questão de polícia

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Antes de FHC, outro político nascido no Rio foi adotado pela elite paulista. Washington Luís, conhecido como “paulista de Macaé”, foi o último presidente do Brasil antes de Getúlio Vargas. Ele ficou renomado também pela declaração de que “questão social é questão de polícia”, além daquela de que “governar é construir estradas”, para enviar os produtos de exportação até os portos e, dali, para o exterior.

A primeira dessas declarações caracterizou a indevidamente chamada “república velha”, porque nada tinha de república e tudo de velha. A declaração apontava para a repressão, como única forma de resposta governamental, diante de mobilizações populares, que colocassem reivindicações de caráter social, seja de salário ou de péssimas condições de trabalho.

Não houve mudanças mais radicais na história brasileira do que a passagem de um personagem como esse para o governo de Getúlio. Se até 1989 os negros eram considerados escravos, pessoas de segunda classe, condenados ao trabalho (o que desqualificava, ao mesmo tempo, o negro e o trabalho) e eram tratados com repressão pelos governos, a partir de 1930 os brasileiros passavam a ser interpelados pelo novo presidente como “trabalhadores do Brasil”.

Mas essa mudança radical não ficava no discurso. Getúlio criou os ministérios do Trabalho, da Educação, da Saúde, a Previdência Social, o direito a sindicalização dos trabalhadores, o salário mínimo, a CLT. Uma mudança que a elite paulista nunca engoliu. Não há nenhum espaço público em São Paulo com o nome de Getúlio e há enorme quantidade com o nome de Washington Luís.

Os dois ícones máximos da identidade de São Paulo são os bandeirantes – veja-se a horrorosa estátua do Borba Gato, em Santo Amaro – e a contrarrevolução de 1932, que pretendia restaurar o poder dos oligarcas do café, para quem Washington Luís é o maior ídolo.

O acelerado processo de restauração conservadora por que passa o Brasil desde 2016, suprimiu a CLT, retornando o país à situação prévia a 1930, quando da ausência do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores e de sua representação pelos sindicatos. Se escanteia o papel de Getúlio e se repõe no seu lugar o de Washington Luís, o da questão social como questão de polícia.

Os retrocessos têm uma dimensão histórica, mas também civilizatória. Não se tratam apenas de diferenças de interpretação, de diferenças políticas. Porque se reabrem temas que se considerava, talvez ingenuamente, que estavam superados. Como, por exemplo, considerar se o Brasil estava melhor ou pior durante a ditadura militar, em comparação com a democracia que conseguimos construir. O uso da tortura, como forma abominável de ação, volta a ser elogiado, assim como os que a utilizaram sistematicamente contra seus adversários. Se volta a falar que a ditadura – a daqui e a do Pinochet – deveria, em vez de prender, torturar, desaparecer, ter fuzilado umas 30 mil pessoas. Agora, o obscurantismo é exibido sem pudor por ministros da Educação, de Relações Exteriores, de Direitos Humanos.

Não é apenas a questão social que volta a ser questão de polícia. Os direitos humanos, em geral – os direitos das mulheres, dos negros, dos jovens, dos indígenas, dos LGBT, dos quilombolas, os direitos dos trabalhadores da cidade e do campo –, tendem a ser criminalizados, a ser objeto de ação do Judiciário, da polícia.

Uma vez, um presidente eleito do Brasil disse que ia “virar a página do getulismo”. Dizia porque tinha consciência que a realização do programa neoliberal era incompatível com o Estado construído por Getúlio. Agora, trata-se de terminar esse objetivo, destruindo o Estado brasileiro, destruindo o Brasil como país, como nação, como sociedade civilizada.

* Sociólogo

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