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O Brasil sofrerá um forte processo de desculturação

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Em meados de 1933, queimas de livros foram realizadas em várias cidades da Alemanha. Toda e qualquer obra que estimulasse o senso crítico que de alguma forma pudesse confrontar o nazismo virava cinzas. Sob a vigilância da implacável SS de Heinrich Himmler, milhares de livros foram queimados. Numa outra frente de ataque, as artes plásticas foram caracterizadas como arte degenerada, ou arte bolchevique, sendo banidas e substituídas pela asséptica arte nazista.

É importante observar que o processo de implantação e consolidação dos ideais nazistas na Alemanha teve acentuado viés cultural. Tome-se como exemplo os pronunciamentos de Hitler e seus desfiles militares, espetacularmente coreografados para arrebatar o povo e que constituíam-se, certamente, na abertura da ópera que o führer, artista frustrado, iria encenar a partir de setembro de 1939, sob a forma da Segunda Guerra Mundial.

Pode-se afirmar que a estratégia de Hitler para conseguir a arianização da Alemanha e quiçá torná-la capital do mundo foi de ordem mais estética que política. Ele sabia que a “purificação” da cultura era determinante para cooptar o povo.

Na Itália de Mussolini, “indivíduos e grupos eram ‘pensáveis’ enquanto estivessem no Estado”, à margem do qual nada podia existir. Na União Soviética de Stálin, com censura absoluta aos meios de comunicação, imagens (e verdades) já eram manipuladas muito antes do Photoshop e das fake news. Regimes totalitários não convivem com liberdade de expressão e/ou pluralismo cultural. Melhor dizendo: esse encontro constitui uma antítese perfeita. Logo, é preciso anular qualquer possibilidade de sublevação que a liberdade de criação artístico-cultural pode suscitar.

No Brasil de coturnos de Bolsonaro, já temos o Ministério da Cultura com certidão de óbito antecipada; a Lei Rouanet sob constantes ameaças; Paulo Freire demonizado; o Escola Sem Partido em análise na Câmara e a Lei Antiterrorismo com propostas de remendos que acabarão enquadrando todos e quaisquer movimentos sociais. O Sistema Nacional de Cultura, que prevê repasses de verba carimbada fundo a fundo para estados e municípios, e dá à Cultura o status de política de Estado, certamente fenece com o MinC.

O ex-presidente do Banco Mundial James Wolfensohn foi taxativo ao afirmar que “atenção concentrada em cultura é base para a melhoria da efetividade do desenvolvimento em educação, saúde, produção de bens e serviços e gestão das cidades” e que “a cultura está no centro das questões relativas à redução da pobreza, bem como da melhoria da qualidade de vida”.

No ano passado, o Ministério da Cultura, que nem Temer extinguiu, estimou que as atividades culturais em 2010 eram responsáveis por 4% do PIB anual brasileiro. Por isso o então ministro da pasta, Roberto Freire, afirmou que “em vez de se cortar recursos da Cultura em um momento de crise, é importante fazer o contrário: investir em cultura para movimentar a economia e fazê-la crescer”.

Não por mera coincidência, a própria questão de proteção ao meio ambiente, que o novo governo sinaliza que vai tratar com menos rigor para agradar ao agronegócio, precisa ser entendida culturalmente. A devastação cultural no Brasil (incluindo o meio ambiente) prometida por Bolsonaro é assustadora e já começou, mesmo antes de ele tomar posse. Bolsonaro e sua tropa vão bater duro na cultura, principalmente nas artes, porque sabem que daí pode nascer a semente da irreprimível oposição. Como ficarão, por exemplo, os Planos de Cultura elaborados pelos municípios em parceria com o Ministério da Cultura, que, em números de novembro de 2017, já totalizavam 2.514, equivalentes a 45,13% do total de municípios brasileiros, segundo o MinC?

Positivamente, entende-se que esse horizonte turvo não pode ser definitivo, pois nada o é. O Brasil mostrou no período eleitoral do que é capaz nas mobilizações pela democracia. Negativamente, por enquanto, o que fica é a triste constatação de que vivemos num país onde apenas 8% dos brasileiros entre 15 e 64 anos estão plenamente alfabetizados e mais de 50 milhões vivem na linha de pobreza, brevemente sob o tacão de um governo que já declarou que não está nem aí pro tal Estado do Bem-Estar Social.

O Brasil sofrerá a partir de 2019 um forte processo de degradação de sua identidade cultural para servir ao capital apátrida. Essa é uma das ações mais perniciosas nos processos de dominação colonialista. Gente aculturada se adapta melhor à canga e ao cabresto. Historicamente, cabe aos intelectuais, artistas em geral, interpretar o contexto e fazerem a contraofensiva na linha de frente. Serão capazes?

* Jornalista, ex-secretário de Cultura e Turismo de Cataguases