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Pescando fantasmas

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Atribui-se a Bernard Shaw a pilhéria, pela qual, em inglês, uma língua algo bárbara, escreve-se fantasma (ghost) e pode-se ler peixe (fish). O autor, tomando palavras em que cada uma das letras da primeira soa de forma inusitada na outra, como em laugh (rir) – onde o gê se pronuncia efe – segue com women, nation e igualando os desiguais, comprova a irreverente equivalência.

Em obras públicas, surpresas dessa monta são comuns: empreiteiras têm formas peculiares de soletrar projetos e sua leitura soe ser muito própria. Falam bem inglês, por certo.

Os regimes de contratação de obras públicas, que desprezam projeto e enaltecem o produto, e a Lei de Licitação – 8666 na intimidade – introduziram um termo, mal copiado do inglês, e que, em nossas terras quentes, não quer dizer rigorosamente nada, e abusam da expressão: Projeto Básico.

E com algo assim, meio barro meio tijolo, passou-se a erigir a nação brasileira, deixando para as raposas a tarefa de organizar o preparo das galinhas, isto é, detalhando o menu, digo, o projeto, que sai do forno prontinho, mas já com outro nome: Projeto Executivo. Hão de ter se lembrado dos assentos nos aviões: na Executiva, come-se bem.

É nessa hora, da escolha dos temperos à temperatura do forno, que se dá o busílis, ou onde se pescam fantasmas.

Com projeto básico não se constrói coisa alguma. Há que antes haver projetos complementares, compatibilizá-los, consultar ensaios e sondagens... Sem isso, trocam-se especificações por especiarias, sem a pilhéria do autor irlandês.

Descobre-se, só então, que o terreno é uma geleia que não condiz com o pescado. E aí, salpique aditivos, substitua itens e besunte com algo que dobra letras e limpa pigarro: Rerratificação. Limpa tudo.

O que é retificar o ratificado? É dizer que um pedaço deu ruim, mas o resto se aproveita. E assim, com lógica de açougueiro vigarista, nasce a monumentália pátria: pontes, palácios, estradas...Catedrais, não mais, pois o Estado é laico. Ainda...

Mas eis que, há pouco, fico sabendo que o vereador Renato Cinco, cujo mandato tem se evidenciado por questões, digamos, mais diáfanas, nos brinda com um Projeto de Lei tão concreto como saído da betoneira. E, com o inspirador número 88, propõe que obras de grande vulto, licenciadas pela prefeitura, só poderão ser licitadas após a realização do Projeto Executivo.

Desconfiem se não vingar ou se alguma instância criar vetos, emendas protelatórias: mumunhas... pois seu mérito é indiscutível.

Se querem acabar com a corrupção, comecem por ai, embora o nobre edil tenha até sido tímido, pois, ao definir grande vulto, com obras no valor de dez milhões de reais, certamente há de ter pensado em pontes, viadutos e passarelas, particularmente naquelas que o mar arrasta, como poeticamente levam as ondas, os versos na areia escritos.

Considerando-se edifícios, apesar de envolverem até dezoito mil itens, o valor é alto. Mas não quero, eu próprio, emendar o Projeto de Lei, pra lá de bem-vindo, e piorar seu já espinhoso caminho, redefinindo o vulto da obra.

Até porque só se ouve a palavra em situações assombrosas: aparições, fantasmas e em programas como “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, quando, de soslaio, entrevia-se um vulto.

Com a decadência do rádio, desapareceram os vultos, e foram as grandes obras que passaram a assombrar.

E depois da fase municipal, espera-se que os renovados Congresso Nacional e Assembleia Estadual, cheios de gente disposta a dar murro em placa de rua, arregacem as mangas, preparem os punhos e enfrentem fantasmas e peixes. Os grandes... não as sardinhas.

Pronto, cheguei nelas! E se, até aqui, alguém, por jovem, não entendeu porque 88 nos inspira, tampouco soube da formidável Adele Fátima e os enlatados peixinhos, que tinham 88 por marca. Vão lá no Youtube conferir!

E 88 pra cima de todos!

* Arquiteto e Urbanista, DSc