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A prostituta da música e o gênio aleijado

Reprodução -
O conceito de tempo
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A recém-lançada cinebiografia da banda Queen, “Bohemian Rhapsody”, traz à luz um dos personagens mais icônicos do rock: Freddie Mercury. O fato de não ser completamente fidedigno à vida do astro, conter “incorreções” na sequência temporal dos acontecimentos, ou mesmo não aprofundar incoerências de uma jornada tão intensa como a do protagonista, pode não agradar aos fãs mais aficionados ou àqueles que parecem ignorar, ou esquecer, que o cinema, sendo expressão artística, é, antes de tudo, lugar das licenças poéticas. Não devendo, portanto, estar comprometido com a reprodução exata dos fatos – se é que a plena exatidão é possível em alguma narrativa, mesmo considerando as pertencentes aos campos das diversas ciências reconhecidas atualmente.

Macaque in the trees
O conceito de tempo (Foto: Reprodução)

Nascido no arquipélago de Zanzibar, em 1946, Mercury adotou a Grã-Bretanha aos 17 anos e tornou-se um dos artistas mais representativos da identidade cultural inglesa, marcada pela irreverência e excentricidade. Intérprete de voz única, revolucionou o rock ao teatralizar shows, mesclar elementos operísticos e imprimir dramaticidade a performances e canções, ao longo dos 20 anos de existência do Queen, palavra que no idioma inglês significa rainha, é sinônimo da expressão gay e, comumente, se liga a adjetivos poderosos e grandiosos. A crítica musical entre os anos 70 e 80 não foi receptiva à obra do grupo, mas junto ao público a conexão e o sucesso só aumentavam. O álbum “A night at the opera”, em 1975, alcançou o topo das paradas em vários países e inaugurou nova estética na produção de videoclipes.

Quatro anos antes de Mercury, nascia, na Inglaterra escolhida pelo cantor, Stephen Hawking. O cientista, falecido em 2018, também ganhou uma versão de sua biografia na grande tela. O filme “A Teoria de tudo”, exibido em 2014 no Brasil, retratou os estudos, os amores e a doença degenerativa de Hawking, que, tal qual Freddie, viria a se tornar um popstar. Seu livro “Uma breve história do tempo”, lançado em 1988, três anos após a antológica apresentação do Queen no Rock in Rio, vendeu mais de 10 milhões de exemplares e foi traduzido em 30 idiomas. Na publicação, ele questiona as três dimensões espaciais hoje categorizadas, a origem do universo e redefine o conceito de tempo. Tudo de maneira palatável, bem-humorada e acessível aos leigos em ciências.

Hawking é um dos mais aclamados cientistas do mundo moderno e ocupou, na Universidade de Cambridge, a cátedra de Isaac Newton. A arte cinematográfica contribuiu para aproximá-lo do público, assim como suas aparições em seriados célebres como “Star Trek – a nova geração”, no qual joga pôquer com Einsten e Newton; “The Big Bang Theory”; e até mesmo no desenho animado “The Simpsons”. Também se inseriu no mundo da música, tendo sua voz sampleada e incluída na canção “Keep Talking”, de Pink Floyd. Contudo, a principal razão de sua popularidade fora do meio acadêmico está no âmago de sua produção científica, que, relacionada às questões originais da humanidade, despertava curiosidade entre os não especialistas, e na forma que desenvolveu para explorar temas complexos em linguajar simples e instigante.

Sua história de perseverança, brilho, humor e superação diante de moléstia severa e dos fatos da vida, em si, também contribuíram para criar a empatia do grande público. A esclerose lateral amiotrófica paralisou e deformou quase a totalidade de seu corpo, e, ainda assim, alçou enormes voos mentais e riu de si mesmo. Certa vez, em entrevista à revista “Time”, disse: “Ninguém pode resistir à ideia de um gênio aleijado”. Freddie, por sua vez, se definiu como “a prostituta da música”. Talvez por sua obra ter sido considerada, em alguma medida pela crítica especializada, como algo concebido para atender às expectativas do público em larga escala e em grandes estádios, enquanto outros artistas de sua geração, como David Bowie, investiam em experimentações ou mesmo se dedicavam ao movimento punk e ao heavy metal.

Fruto e expressão de mesma época e com trajetórias distintas, ambos romperam paradigmas e fazem lembrar que o tempo é finito e que, no correr das horas, nossa força motriz é a criatividade e autenticidade. Acometidos por doenças impiedosas e estigmáticas, alimentaram o desejo de viver. Stephen, contrariando os prognósticos, desfrutou 76 anos. Freddie, abreviou-se em 45 anos de idade, tentando, até o fim, produzir seu máximo. Em dias de falso moralismo e pequenezas, quando diante da grandeza de artistas do porte de Mercury, parte da plateia, em pleno século 21, se dedica a vaiar cenas homoafetivas, fica claro que precisamos dos libertários e visionários. Dos que se entregam às paixões e contradições. Dos que, amando a própria vida, tornam melhor a vida do semelhante e não se ocupam em vigiar e julgar o que jamais conseguirão viver. O legado dos dois gigantes? Nos ensinar que não devemos abrir mão de ser quem somos.

* Artista profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciências

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