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Transparência e democracia

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A frase mais sincera e chocante dessa semana veio do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Há quem tenha visto nela laivos de cinismo, quando não de provocação. Discordo. Vi na advertência de sua excelência um gesto de responsabilidade e de transparência diante do povo brasileiro. Antes fossem assim todos os nossos políticos. Revestido da autoridade que seu alto cargo no Poder Legislativo impõe, a frase adquire ressonância inquestionável. E o que nos diz Rodrigo Maia? Clara e inequivocamente nos recorda o que todos já sabíamos ou deveríamos saber: o país não tem como atender às demandas da sociedade. Ponto Final. Saudações.

A rigor, desde a famigerada emenda constitucional, conhecida popularmente como do “teto de gastos”, vemos – e milhões de brasileiros sentem na carne – que a sociedade não só não tem suas demandas atendidas, mas também que os direitos sociais inscritos na Constituição de 1988 estão sendo corroídos pela cáustica política econômica imposta sob o cognome de “ponte para o futuro”. O absurdo desabou sobre nossas cabeças quando a emenda constitucional passou pelo Congresso Nacional, em estrita obediência aos ritos formais exigidos pela Carta constitucional. Ora, se assim foi, é legítimo perguntar se o nosso legislativo compactua com manobras solertes contra o bem-estar da sociedade ou se, paradoxo dos paradoxos, a sociedade brasileira mergulhou numa suicida aventura política. A palavra “suicida” talvez provoque reticências na leitora ou no leitor que me honra com sua atenção até aqui. Mas relevem o mau gosto da linguagem e me ajudem na preservação do vernáculo; qual qualificativo atribuir a uma política que aumenta o desemprego, a mortalidade infantil, reduz a assistência médica para idosos e gestantes? Chamá-la de que, exatamente? De transitória, se o teto de gastos é emenda constitucional sancionada pelo Supremo Tribunal Federal, supremo guardião da Constituição, que nela não percebeu a insanidade de seus pilares? Genocida?

Não creio que a sociedade brasileira tenha embarcado num kamikaze por gosto ou aventura. Nossos dirigentes adotaram, à revelia da sociedade, uma ideologia econômica cuja difusão pelo mundo está a demonstrar sua inquestionável eficácia em aumentar o desnível social entre os “have” e os “have not”, como dizem os áulicos da universidade de Chicago. Portanto, não nos enganemos, embora enganados tenhamos sido. Na ideologia “chicana”, o desnível social é o efeito colateral do soporífero do equilíbrio fiscal incontinente, da abertura comercial unilateral, do desemprego em massa. Os princípios de justiça social inscritos na Constituição de 1988 são meras quimeras inconciliáveis com a ideologia neoliberal a se implantar paulatinamente nas sociedades, ainda que ao preço do afogamento da democracia e da exumação de regimes autoritários.

A pergunta que não quer calar, ensurdece. E agora, que fazer? Assistir passivamente à transformação do Brasil em uma Cuba de Fulgencio Batista, onde a sociedade vive de biscates, drogas e rock and roll? Ver o Rio de Janeiro se transformar num cassino dos ricos e na roleta russa dos pobres? Nossa alternativa é a defesa intransigente da Constituição. Apesar das mais de 100 emendas nos 30 anos de vida, a Constituição de 1988 ainda é fruto de um negociado contrato social firmado entre governo e governados. Nela se estipulam claramente direitos e deveres de uma nação liberta de um “movimento paralisante”. Não há como impor deveres sem resguardar direitos fundamentais nela garantidos. O debate em que a sociedade quer engajar-se chama-se “Democracia” e não se esgota nas eleições. Como ensinam os americanos, que tantos admiram, exigiremos que os parlamentares sejam, como de fato são, independentemente de coloração política, defensores da sociedade constitucionalmente projetada. Uma sociedade sem medo de si própria. Senão, mais do que nossa nação e a de nossos netos, perderemos, na bacia das almas, o princípio maior que impõe a Constituição a todo brasileiro: o direito a uma vida digna.

* Embaixador aposentado