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Espaços simbólicos

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As cidades são organismos vivos em constante mutação como as células do corpo humano que morrem e renascem. Células que não se renovam produzem tecidos necrosados - nas cidades, espaços urbanos fantasmas. Em nosso país, com algumas exceções, os centros históricos das grandes cidades se transformaram, ao longo dos anos, em áreas degradadas e ocupadas por populações socialmente marginalizadas.

Quando algum projeto de revitalização é realizado, a primeira vítima, expurgada do local, é sempre o seu ocupante original, que por décadas impediu, mesmo que precariamente, sua transformação definitiva em bairros abandonados - desertos de vida. Só essa defesa precária de um patrimônio que pertence a todos mereceria, do poder público, o reconhecimento por meio de políticas que assegurassem aos antigos habitantes moradias dignas nos mesmos locais onde por décadas viveram.

Mas a história da renovação urbana das nossas cidades tem sido recorrente na expulsão dos pobres para áreas periféricas, a exemplo do que ocorreu no Rio quando do desmonte do Morro do Castelo e das obras do Prefeito Pereira Passos. A formação do subúrbio carioca, ao contrário do que ocorre em outros países, em que “suburb” se caracteriza por verdes áreas voltadas para a classe média, aqui se estabeleceu como o local de moradia do proletariado em formação e de trabalhadores de baixo poder aquisitivo.

Uma sociedade de classes, preconceituosa e conservadora como a nossa, logo cunhou o significado do subúrbio e dos suburbanos de forma depreciativa. Essa população de brancos, negros e mestiços, apartada do seu local de origem, separada fisicamente dos ditos bem nascidos, tem vivido nas últimas décadas a diáspora dos pobres em sua própria terra.

Nada mais cruel do que indivíduos que falam a mesma língua e que possuem símbolos culturais comuns, serem impedidos de usufruir o sentimento de pertencimento de uma mesma cidade. Impossível não fazer o paralelismo simbólico ao tráfico dos navios negreiros, que perversamente separavam os futuros escravos por etnias, com seus diferentes dialetos. Identificavam-se pela cor da pele, mas incomunicáveis entre si pela linguagem verbal que as palavras asseguram. A história do nosso povo foi sempre marcada pela violência física e moral.

Então, o que esperar hoje de nossas cidades, palco dos grandes conflitos sociais, senão que a violência latente se expresse rotineiramente em atos explícitos de inconformismo em relação a uma dissimulada paz entre as classes sociais historicamente antagônicas? Remédios contra essa revolta, inoculada por anos de humilhação e opressão, não se encontram na farmácia da esquina. Ao contrário, exigem alquimias daqueles que, acostumados às lutas sociais, fazem da compaixão e da solidariedade óleos diluentes das ervas que saram as feridas da alma de um povo. Fórmulas milagrosas do restauro da dignidade humana.

Vivemos em nossa cidade e nosso país um momento político delicado. Percebe-se em geral um espírito beligerante – implícito e explícito - no enfrentamento da crise por que passa a sociedade. Para que não transformemos nossas cidades em espaços definitivos do apartheid à brasileira, é necessário acreditar na radicalidade de ações e políticas voltadas para o equilíbrio social, traduzidas por uma justa distribuição de renda, assim reduzindo a distância entre ricos e pobres.

Aliás, os ricos pouco precisam do Estado. Os pobres, sim, necessitam de políticas públicas eficientes que garantam atendimento hospitalar adequado, escola em tempo integral de boa qualidade, moradia digna em bairros urbanizados, rede de transporte público que reduza o tempo de deslocamento entre a casa e o trabalho, entre outras.

As cidades serão humanas e simbolicamente verdadeiras quando forem afastados os fantasmas das desigualdades que nos assombram. Paridade para as vidas que se iniciam. Oportunidades iguais para todos. O resto deixe com o povo, pois é preciso acreditar na sua força criativa. Ele saberá construir cidades e sociedades reais e também alegóricas, melhores do que as que temos hoje.

* Arquiteto e urbanista

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