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Me engana que eu gosto - II

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Dentro de critérios eticamente defensáveis e corretos, a ciência tributária criou um imposto distributivo chamado “IR” (imposto sobre a renda). No Brasil, como outras coisas, foi sendo desvirtuado e tornou-se meramente arrecadador.

Antigas reportagens constatavam que o maior contribuinte individual do IR no Brasil era Senor Abravanel (Silvio Santos) que, sozinho, como pessoa física, recolhia (base 1998) mais que qualquer das fábricas de carros instaladas no Brasil.

Talvez por esses motivos, as tarifas de serviços ditos públicos, que teoricamente seriam para reembolsar os custos desses serviços, e eram uma coisa relativamente simples de entender e gerir, acabaram se tornando objeto de propostas complexas e díspares que vão de distribuição de renda por via de estruturas tarifárias com “subsídios cruzados”, a “inibidores” de consumo, a “direito de cidadania” etc.

Não é preciso ir muito longe no tempo, talvez uns 50 anos, e todos os serviços públicos tinham tarifas decrescentes conforme o aumento de consumo. Nas escolas econômicas racionais, o argumento que fundamentava essa estrutura de preço unitário decrescente chamava-se “economia de escala”. Embora continue racionalmente válido, passou a ser ignorado.

Não se sabe muito bem como isso foi acontecendo, mas o assunto merecia um estudo de mestrado ou doutorado. Dou até uma pista: no governo Médici, tendo Delfim Neto como ministro, por volta de 1973, resolveu-se enganar as estatísticas de inflação congelando as tarifas de serviços públicos.

Esse me-engana-que-eu-gosto funcionou até que, por efeito retardado, reapareceu através de um conhecido 12% reposto nos cálculos da inflação cerca de 20 anos depois e que muitos se lembrarão.

Pois bem, nesses idos de 1973, o que fizeram as concessionárias estatais de serviços públicos? Inventaram uma “tarifa básica” que foi congelada e uma “estrutura tarifária” crescente com o consumo: quem consumia mais pagava mais pelo preço unitário do serviço, fosse água ou eletricidade. Para acobertar o assunto “inventou-se” que era socialmente justo pois quem consumia mais água seria mais rico. Na prática aumentou a arrecadação.

De iníco, timidamente, pequenas diferenças, até as escandalosas variações de hoje, em que, por exemplo, o metro cúbico de água da Cedae ou da Sabesp varia cerca de 10 (dez) vezes entre o menor valor e o maior. Idem para o metro cúbico de esgoto. A eletricidade talvez não chegue a tanto, mas é ou foi parecido.

Aliás, como o assunto não tem lógica nenhuma, fora o descalabro administrativo, não há leis (nem no sentido legal nem no científico) a serem seguidas, cada um faz o que quer. Ou qual seria o critério da eletricidade e qual o da água, do gás etc.? E por que o valor do metro cúbico doméstico é diferente do comerciante, e este é diferente do industrial, seja ele um relojoeiro ou confecção com baixo consumo de água agregado à sua produção, ou um restaurante, uma lavanderia, fábrica de bebidas, com grande dependência e consumo de água?

Por que dois moradores que consomem pouca água em seu apartamento de luxo chegam a pagar pelo metro cúbico de água dez vezes menos que uma família numerosa, com dez, quinze pessoas no mesmo hidrômetro, e que precisam consumir muita água? Qual a lógica? Não há!

A situação é tão absurda, que para não perder consumidores industriais e comerciais de relevo, parece que concessionárias estão fazendo acordos paralelos com alguns deles, em segredo. Por que com alguns? Imaginem os passivos contábeis que estão sendo criados, pois os que não estão sendo incluídos vão pedir isonomia!

Alguém disse: “A mentira muito repetida acaba prevalecendo como verdade”. Resultado: a falsa desculpa, inicialmente tímida, de distribuição de renda com fundo social virou “verdade”.

Água, eletricidade, gás, enfim, não têm ideologia, não devem ser usados como fonte de reequilíbrios, pois só vai servir de engodo.

Distributivo é o “IR”, precisamos lutar para que seja efetivo e eficaz. Qualquer outra abordagem é fuga, ignorância / inocência, demagogia ou uma mistura.

Tarifa é para cobrir os custos de um serviço, aí incluídos os investimentos, os custos operacionais, manutenção, pesquisa, melhorias, reinvestimentos, margens e riscos. E só. Quem consome mais e quem está mais perto da fonte de água, colabora para a economicidade do sistema como um todo e para sua viabilidade. Deveriam pagar um preço unitário menor, calculado racionalmente em função de distâncias e economias geradas.

As parcelas de “justiça social” seriam mais justas tarifando o especulador imobiliário ou a casa que não consome pela “demanda instalada” quando houver rede com água disponível em frente ao terreno ou casa fechada. As exceções, que existem e não devem ser ignoradas, poderiam ser tratadas com um “vale água” do tipo “bolsa família”. O resto é outro me-engana-que-eu-gosto só.

* Engenheiro consultor