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Agonias do público em tempos de Narciso

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Narciso acha feio o que não é espelho; e odeia o que, sendo público, não tem face.

A vida pública de hoje é animada, agitada e, mesmo, ativista. Mas ser intensa não quer dizer que está bem; pode significar, ao contrário, que esteja a agonizar. Lá em meados dos anos 1970, o sociólogo americano Richard Sennett havia diagnosticado o declínio da vida pública. Bem antes da internet e das redes sociais, ele constatou que tendemos a nos submeter, crescentemente, a uma “tirania da intimidade”. Como é que pensamos, comumente, a sociedade e suas instituições? Dificilmente fazemos de modo objetivo, pois precisamos subjetivar e personalizar. Se algo não é “intimizável”, tende a ser “chato”, “perturbador” ou, no limite, “odioso”. Como é que avaliamos os outros e somos avaliados? Quase sempre valemos pela exposição do que é íntimo e pela capacidade de “se expressar” e de “ser si mesmo”. Perdemos de vista, assim, o valor objetivo da ação para focar na “personalidade”: é boa a ação “autêntica”, importando pouco o resultado sobre o mundo, a edificação de uma obra ou a objetividade de uma argumentação. Como salienta Sennett, a ação se torna menos importante do que o seu autor. Nos guiamos por um estranho dever: devemos nos justificar, a todo momento, a nós mesmos e aos outros, sobre quem somos e o que queremos ser.

Diante disso, as questões públicas são pensadas como matérias privadas, dignas de sentimentos, identidades e gostos pessoais. Querelas com identidades nos ocupam sobremaneira; por outro lado, questões públicas não suscitam muitos engajamentos. Psicologizamos mesmo quando buscamos “causas objetivas”. Quando analisamos as intenções dos atores, damos importância à identificação de um inimigo, que é um obstáculo ao nosso desejo, sem nos preocupar em pensar o movimento impessoal do conjunto das relações ou suas consequências sobre uma totalidade que é indiferente a nós. Esquecemos assim que a vida pública exige, volta e meia, um ponto de vista “imparcial”, com abstração e alternância de perspectivas, feitas com muita imaginação e muito diálogo. Em suma, a vida pública deveria ser pensada para além dos sentimentos amorosos e hostis de seus cidadãos.

Esse é um sintoma de novas formas de ser sujeito. Quando a psicanálise nasceu, lidava-se com uma sociedade repressiva geradora de neuroses histéricas; hoje, as clínicas estão sendo ocupadas cada vez mais por transtornos narcisistas. O narcisismo borra as fronteiras entre eu e não eu. As coisas perdem a clareza de uma realidade própria para se tornarem sempre subjetivamente referidas e significadas, aprisionando o sujeito em uma obsessão consigo. Narciso pergunta-se interminavelmente: “O que isso significa para mim e em que isso me gratifica?; “Estarei sendo autêntico e me expressando de modo suficiente e transparente?”; “Estarei agradando e causando?”. Ao invés de ter satisfação, Narciso recai sempre num “não é isso que eu queria” ou num “se ao menos eu pudesse sentir mais...”. Claro, a culpa será posta para fora: “Nada e ninguém está à altura de quem sou e tudo e todos podem vir a ser um obstáculo ao meu desejo”. Essa culpa que foi posta para fora retorna em forma de transtornos afetivos, bastante conhecidos na psiquiatria contemporânea. Tudo o que obstaculiza essa frágil individualidade gera ansiedades, podendo desencadear, mesmo pequenino, um drama ou tragédia, às vezes vivenciado no limiar da psicose.

É por isso que a existência de um domínio público se torna um problema em tempos de Narciso. Como construir uma vida pública com indivíduos que se aprisionam em uma interminável preocupação consigo e que tendem a anular uma existência significativa fora de si? Com isso, o sentido da “coisa pública” perde consistência; mas, se o público é perdido, a própria vida privada fica vulnerável e a intimidade devassada.

Portanto, a defesa de si depende da recuperação do sentido do público, com uma conscientização de que agir e pensar no público é humanizador e permite fortalecer a própria individualidade. Pelo público, aprendemos que muito do que é desejável a todos, seres públicos e cidadãos do Estado, não possui imediata recompensa psicológica para nós, seres privados; e experimentamos o valor da nossa participação no interesse coletivo e numa comunidade política diante da qual somos meros mortais. Mas como fazer Narciso compreender a existência dessas coisas que, relevantes a todos, não espelham o seu rosto, nem possuem uma face disponível para sua contemplação?

André Magnelli* e

Marco Aurélio de Carvalho Silva**

* Diretor do Ateliê de Humanidades e doutor em Sociologia

** Psicanalista e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades