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Resistir e avançar

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Do ponto de vista de quem pensa no aprofundamento das mudanças que a sociedade brasileira vinha experimentando nas últimas décadas, com vistas a eliminar a pobreza e reduzir sua brutal desigualdade, e também na afirmação dos direitos das minorias políticas e culturais, ou seja, do ponto de vista do campo democrático, a conjuntura política em que mergulhamos exige muita clareza sobre o que se pode e o que se deve fazer. Dois tipos de ação, que evocam movimentos contraditórios, definem bem os impasses que se colocam diante de nós: resistir e avançar.

Diante dos violentos ataques, desferidos pela candidatura vitoriosa à Presidência da República, aos valores democráticos fundamentais e levando-se em conta que seu projeto de viés autoritário foi consagrado pelas urnas, sem dúvida que o momento é de resistência, de defesa das conquistas de liberdade e de ampla participação na vida política do país.

A resistência precisará ocorrer na escala do cotidiano, nas situações de rua, trabalho, escola e universidade, no transporte público, nas conversas domésticas etc. Mas é na sociedade civil, casamata da defesa das liberdades, com seus sindicatos, movimentos sociais, associações de diversos tipos e, muito especialmente, por meio da grande imprensa, que a resistência democrática precisará se dar com mais vigor. Por seu turno, sua capacidade de resistência necessariamente guardará relação de dependência mútua com os parlamentares do campo democrático e com os diferentes segmentos do Estado, cuja função precípua é a de atuarem como fiadores da Constituição. A começar pelo Ministério Público, mas também a Defensoria Pública, e, sobretudo, o Poder Judiciário, guardião último da Constituição. Ao lado disso, a resistência também precisará ser feita nas redes sociais, espaço novo e fundamental de articulação para as sociedades contemporâneas, e que perpassa todas essas esferas sem respeitar suas fronteiras.

Mas o ato de resistir só se sustenta como retaguarda para a elaboração de uma agenda propositiva. Afinal, estar fora do governo altera as condições de luta, mas de modo algum o sentido dos ideais que a animam. Daí a urgência, para o campo democrático, de fazer avançar um ciclo de renovação da imaginação, seja para elaborar novas respostas a velhos problemas, para reformular a agenda de problemas públicos a partir da incorporação de novos atores, por exemplo, dos jovens das periferias, esmagados por formas violentas de privação de acesso à política.

O ciclo eleitoral recentemente encerrado explicitou a agenda que deve desafiar o campo democrático. Em especial, três grandes temas: a corrupção (que remete à relação do Estado com o mercado); segurança pública (relação do Estado com a sociedade, e mais precisamente com as vítimas privilegiadas da escalada da violência urbana, que são os jovens que habitam os territórios populares); e a questão dos costumes, que teve no “kit gay” a sua caricatura (e que, em última instância, remete à relação do Estado com a cultura, notadamente com a educação, religião e família – não por acaso redefinida como uma cidadela da moralidade). Em grande medida, foi por construir com êxito a imagem de que tinha respostas a esses três temas que Bolsonaro saiu vitorioso.

Para avançar, o campo democrático precisará construir respostas concretas a esses temas, ao mesmo tempo em que defender da fúria neoliberal os marcos do pacto socialdemocrata que constitui o padrão de solidariedade desenhado em 1988.

Nenhum desses desafios esteve à margem das agendas dos dois grandes partidos que se revezaram no poder nas últimas décadas. Na questão da relação do Estado com o mercado, por exemplo, enquanto o PT propunha “desprivatizar”, o PSDB enfatizava a necessidade de despatrimonializá-lo. Também é verdade que tanto a versão petista quanto a tucana de reforma do Estado foram parcialmente realizadas, produzindo efeitos benfazejos na capacidade de regulação do Estado e transparência em suas relações com o mercado, vide as leis da improbidade administrativa, responsabilidade fiscal e ficha limpa, e o fortalecimento do Ministério Público, da Polícia Federal e da Justiça Federal, apenas para citar alguns dos mais importantes avanços. Trabalhar pela valorização do padrão republicano de relação entre Estado e mercado foi, portanto, uma agenda central ao campo democrático, mas precisará ser retomada com energia, a fim de se superar a fantasia neoliberal – verdadeira face do novo governo – de que a solução para os problemas do país é a redução do Estado ao mínimo.

Tudo leva a crer, portanto, que a partir de agora o campo democrático precisará extrair um novo significado da dialética entre resistir e avançar, fazendo de suas contradições elemento de força e de renovação. Da resistência advirá a vivificação dos valores em torno dos quais se irmanaram as forças que deram sustentação à construção e consolidação da Constituição de 1988, e que são a sua referência comum. E é desse núcleo valorativo compartilhado que o campo democrático precisará se nutrir para avançar na elaboração de um novo horizonte de reformas, capaz de reavivar as esperanças do mundo popular e das classes médias, e muito especialmente dos jovens em uma sociedade mais justa, reconectando-os com a cultura do direito a ter direitos, que é a razão última do projeto de democracia conquistada em 1988.

* Sociólogo, professor da PUC-Rio